Já
contei aqui a história da doida mansa que, no começo dos anos 60, apareceu no
portão da minha casa em Taquaritinga para buscar a chave do Banco do Brasil.
Ela quis saber se eu era filho do prefeito. Disse que sim. A mulher negra,
franzina e maltrapilha informou que era filha de Getúlio Vargas. Achei que
aquilo era coisa a ser tratada por gente grande e fui chamar minha mãe.
Ela
se identificou novamente e revelou que o pai lhe deixara como herança o Banco
do Brasil. Com o suicídio, tornara-se dona da grande instituição financeira,
incluídos bens imóveis e funcionários. Como as chaves das centenas de agências
espalhadas pelo país ficavam sob a guarda do prefeito, ela deveria apenas,
sempre que quisesse ou precisasse, solicitá-las ao chefe do Executivo municipal.
Era
por isso que estava lá, repetiu ao fim da exposição. Dona Biloca percebeu que
aquilo iria longe, decidiu passar a pendência adiante e transferiu a solução
para o primogênito ─ que, para sorte de ambas, trabalhava no Banco do Brasil de
Taquaritinga. Depois de ensinar-lhe o caminho mais curto, recomendou que fosse
até a agência, procurasse um moço chamado Flávio e transmitisse o recado: “Diga
que a mãe dele mandou dar um jeito no problema da senhora”.
O
jeito que deu confirmou que meu irmão mais velho era mesmo paciente e
imaginoso. Ao saber com quem estava falando, dispensou à visitante as
deferências devidas a uma filha de presidente da República, ouviu a história
com cara de quem está acreditando em tudo e, terminado o relato, pediu licença
para falar com o gerente. Foi ao banheiro e voltou com a informação: a chave
estava no cofre da agência. Mas só poderia entregá-la se a filha de Getúlio
confirmasse a paternidade ilustre.
“A
senhora precisa buscar a certidão de nascimento no cartório”, explicou Flávio.
Ela ficou feliz. Avisou que em meia hora estaria de volta com o papel.
Reapareceu três ou quatro meses mais tarde, mas no portão da minha casa, de
novo atrás do prefeito. Mais uma vez foi encaminhada ao moço da agência, que
liquidou a questão do mesmo jeito. O ritual foi reprisado quatro vezes em menos
de dois anos. Até que um dia ela saiu em direção ao cartório e nunca mais
voltou.
Lembrei-me
da doida mansa que coloriu minha infância quando o presidente Lula registrou em
cartório um Brasil inexistente. Tinha trem-bala, aviões pontuais como a rainha
da Inglaterra, rodovias federais de humilhar motorista alemão, luz e moradia
para todos, três refeições por dia para a nova classe média, formada pelos
pobres de antigamente. Quem quisesse ver mendigo de perto que fosse até Paris e
se contentasse com algum clochard.
A
transposição das águas do São Francisco havia exterminado a seca e transformado
o Nordeste numa formidável constelação de lagos, represas e piscinas. O sertão
ficara melhor que o mar. Os morros do Rio viviam em paz, os barracos valiam
mais que as coberturas do Leblon. E ainda nem começara a exploração do pré-sal,
que promoveria o Brasil a presidente de honra da OPEP e faria da potência
sul-americana uma Noruega ensolarada.
No
país do cartório, o governo não roubava nem deixava roubar, o Mensalão nunca
existira, os delinquentes engravatados estavam todos na cadeia, os ministros e
os parlamentares serviam à nação em tempo integral e o presidente da República
cumpria e mandava cumprir cada um dos Dez Mandamentos. Lula fizera em oito anos
o que os demais governantes não haviam sequer esboçado em 500.
Daqui
a alguns anos, é possível que um filho do prefeito de São Bernardo do Campo
tenha de lidar com um homem gordo, de barba grisalha, voz roufenha e o olhar
brilhante dos doidos de pedra, exigindo a devolução da maravilha com firma
reconhecida em cartório. A filha de Getúlio tropeçara na falta da certidão de
nascimento. O pai do país imaginário estará sobraçando o papel cheio de selos,
carimbos, rubricas, garranchos e assinaturas.
Tornei
a lembrar-me da herdeira do Banco do Brasil ao ver o que Dilma Rousseff anda
fazendo para continuar no emprego que já perdeu. Daqui a poucos anos, poderá
aparecer na porta da casa do prefeito de Porto Alegre a mulher de terninho
vermelho, calça preta e cara de desquitada de antigamente que, com aquele andar
de John Wayne, zanza pelas ruas repetindo o mesmo grito de guerra: “Foi golpe!”
Apesar
do juízo avariado, nem ela vai querer de volta o país que destruiu. Só exigirá
a chave do Palácio do Planalto. Para livrar-se do problema, os filhos do
prefeito devem pedir-lhe que mostre a certidão assinada pelos golpistas. E
presenteá-la com um exemplar da Constituição.
Por:
Augusto Nunes (VEJA)
Sexta-feira,
29 de abril, 2016 ás 17hs
Nenhum comentário:
Postar um comentário