O temor da arbitrariedade voltou ao
Brasil. Ferindo a Carta Magna, os ministros do Supremo Dias Toffoli e Alexandre
de Moraes usaram do poder da lei e atentaram contra a liberdade de expressão e
direitos individuais, numa afronta mais grave do que a praticada pelos
militares nos tempos da ditadura. Afinal, deveriam ser eles os guardiões da
Constituição
A
liberdade de expressão é um valor inegociável. Insurgir-se contra ela é como
ferir de morte preceitos universais e democráticos. Reveste-se ainda de maior
gravidade quando a afronta a esse direito constitucional é perpetrada
justamente por quem deveria assegurá-lo. O STF é o guardião máximo das leis e
da Carta Magna. Mas o que o País testemunhou estupefato, na última semana, foi
ao rebaixamento do tribunal a uma corte inquisitorial de uma republiqueta de
bananas. Pior: a céu aberto – numa espécie de trevas nas luzes. Por isso, os
dias 13 e 15 de abril de 2019 vão ficar indelevelmente marcados. Lembrados na
posteridade como aqueles em que cidadãos brasileiros viram novamente – 34 anos depois
do fim da ditadura militar – a sombra negra da autoridade pública atentar de
forma arbitrária contra as suas liberdades. “Mordaça, mordaça. Isso não se
coaduna com os ares democráticos da Constituição de 1988. Não temos saudade de
um regime pretérito. Não me lembro, nem no regime pretérito, que foi um regime
de exceção, coisas assim, tão violentas como foi essa”, lamentou um dos
próprios ministros do tribunal, Marco Aurélio Mello.
Na
manhã do sábado 13, os jornalistas da revista digital Crusoé e do site O
Antagonista receberam das mãos de um oficial de Justiça uma determinação do
ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes que censurava
integralmente o conteúdo de uma reportagem. Na tarde do mesmo dia, outro agente
da Justiça os multava em R$ 100 mil pelo alegado descumprimento da decisão,
quando na verdade ela tinha sido pronta e integralmente cumprida. Na
segunda-feira 15, as casas de sete cidadãos brasileiros, entre eles um militar,
foram invadidas. Seus computadores pessoais levados. Motivo: eles manifestaram
indignação sobre o que consideram desmandos do Supremo. As decisões tomadas em
conjunto pelo presidente da Corte, Dias Toffoli, e pelo ministro Alexandre de
Moraes chocam por inúmeras razões. A primeira é pela estultice, já que o efeito
prático foi o inverso. Além de tisnar a imagem do STF, não evitou de forma
alguma que o Brasil inteiro hoje saiba que, na planilha da Odebrecht, Toffoli é
“o amigo, do amigo de meu pai”. Bem mais grave que a estupidez inócua é, porém,
a forma como retornou ao País a censura, a perseguição e a intimidação de
pessoas pela simples manifestação do pensamento. Na ditadura, quando tais atos
se banalizaram, o País vivia um regime de exceção que eliminara, por diversos
atos discricionários dos generais de plantão, a liberdade. O Ato Institucional
nº 5 cassou três ministros do Supremo pela defesa que faziam dos direitos
constitucionais e dos princípios democráticos: Vitor Nunes Leal, Hermes Lima e
Evandro Lins e Silva. Assim, é inacreditável, intolerável mesmo, que a aura da
censura e da intimidação regresse agora justamente por atos de ministros do STF
em plena democracia, pela interpretação torta da Constituição, leis e
regimentos.
Desde
que, no dia 14 de março, Toffoli estabeleceu um inquérito para investigar
“notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e
infrações revestidas de animus caluniandi, diffamandi e injuriandi, que atingem
a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e
familiares”, vão-se escrevendo na Suprema Corte tristes páginas de decisões
equivocadas que contribuem para manchar a sua reputação. Se inicialmente
prevalecia sobre a atitude de Toffoli apenas uma suspeita de que, antes de
resguardar o STF, os atos visavam preservar os próprios ministros de
investigações e suspeitas que pesam contra eles, os propósitos ficaram óbvios
na última semana – quais sejam, o uso e abuso das prerrogativas do cargo tão
somente para blindagem própria. Ao tentar justificar o injustificável, no caso
a censura, Toffoli transformou uma informação que o comprometia íntima e
pessoalmente num ataque à instituição, quando nem de longe se tratava disso. O
epíteto “amigo, do amigo do meu pai” faz alusão a Toffoli, não ao tribunal. O
presidente da Corte sabia disso, mas preferiu se apresentar como a encarnação
das instituições. A personificação do Supremo.
No
episódio em que outro togado, o ministro Alexandre de Moraes, não se limitou ao
papel de coadjuvante, houve ainda clara extrapolação de atribuições. No sistema
penal acusatório, não pode um único organismo estabelecer todas as funções de
ofício. Normalmente, um órgão acusa, outro defende e um terceiro julga. O
Supremo resolveu cumprir todos os papéis. Foi ao mesmo tempo o querelante
(reclamante), quem investiga (poder de polícia), acusa (promotor) e o juiz que
decide – avocando para si, por lamentável, a postura de censor, aquele que,
sabe-se bem, em tempos sombrios da vida nacional circulava e rabiscava as
reportagens proibidas. Coube à procuradora-geral da República, Raquel Dodge,
questionar o sentido do pedido de investigação, uma vez que não estavam
identificados “os fatos específicos”. Para Dodge, tratou-se de uma janela para
coibir qualquer coisa que provocasse incômodos ao Tribunal.
Dodge
não é ministra do Supremo, mas sabe muito bem que, no Estado Democrático de
Direito, a informação é desimpedida e livre. Só num Estado de arbítrio compete
à Justiça determinar o que é e o que não é verdadeiro, obrigando retirar das
páginas o que não considera correspondente aos fatos. Tornar uma revista ou um
jornal co-partícipe de um crime de vazamento de informação – que nem sigilosa
era – equivale a censurar previamente matérias investigativas de todo e
qualquer veículo. Não só. Como a Carta Magna assegura a liberdade de expressão
conquistada no Brasil pela via democrática, agredi-la como se fez perseguindo
críticos e invadindo porta a dentro seus lares é agredir a democracia em si.
Como bem disse Ulysses Guimarães durante a promulgação em 1988: a Constituição
certamente não é perfeita. “Quanto a ela, discordar sim. Divergir, sim.
Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca”.
Embora
o Supremo se esmerasse em conferir ares de conspiração a uma atividade
intrinsecamente jornalística, é irrefutável: o ministro e relator do inquérito,
Alexandre de Moraes, com as bênçãos de Toffoli, aproveitou uma filigrana
jurídica para justificar uma arbitrariedade. A minúcia era o fato de a PGR não
ter recebido o tal documento. Aí tudo virou “fake news” – pretexto torpe para
justificar a escalada contra a liberdade de expressão. O mais assustador é que,
no desenrolar do episódio, Toffoli e Moraes, ao invés de perceberem a gravidade
do erro, aprofundaram ainda mais o arbítrio, ao irem adiante sem freios com a
toada fora da curva democrática que embalou a invasão às residências de sete
cidadãos. Entre eles, o microempresário Ermidio Nadin, de 67 anos, que fabrica
roupas para cachorros, e cujo perfil no Facebook registra módicos 200
seguidores. Ou Isabella Sanches Trevisani, candidata a deputada estadual no ano
passado, que recebeu tão somente 512 votos. Alguém acredita que esses
simplórios cidadãos representem de fato uma ameaça às instituições? Pois a ação
patrocinada pelos togados do STF sustentava a doidivana argumentação de que
essas pessoas, pelas postagens que fizeram, conspiravam para fechar o STF. Dos
alvos da operação de busca e apreensão, o mais notório foi o general reformado
Paulo Chagas, candidato a governador do Distrito Federal pelo PRP. Chagas
defendia a necessidade de criação de um “tribunal de exceção” para controlar o
STF. Antes de a polícia invadir a casa do militar no bairro de Águas Claras, no
Distrito Federal, o general tinha ido a São Paulo buscar seu neto para passar a
Páscoa com ele. “Fiquei surpreso. Fiz algumas críticas. Mas nada que ensejasse
uma ação dessas”, argumentou Chagas à ISTOÉ após a ação policial. No fim da
semana, a Procuradoria-Geral da República ainda tentou sustar o inquérito. O
ministro Alexandre de Moraes deu de ombros. Indeferiu integralmente o pedido e
seguiu sua balada rumo à inexorável desmoralização do STF.
Rui
Barbosa afirmava que a imprensa é a vista da nação. Por ela é que a nação
acompanha o que lhe passa ao perto e ao longe, enxerga o que lhe malfazem,
devassa o que lhe ocultam, colhe o que lhe sonegam, percebe onde lhe alvejam,
mede o que lhe cerceiam, vela pelo que lhe interessa, e se acautela do que a
ameaça. Por isso, impedir a publicação de algo é como amordaçar não apenas a
boca, mas também vendar os olhos de uma nação. Foi o que o STF conseguiu fazer.
Não por acaso, vozes das mais eloquentes da República levantaram-se contra o
tribunal, que como bem definiu recentemente o ex-ministro Ayres Britto adota
comportamentos reveladores “de uma certa pequenez de alma”. Até o presidente
Jair Bolsonaro, tão criticado por ter flertado no passado recente com práticas
anti-democráticas, deu uma aula ao Supremo: “A mídia é necessária para que a
chama da democracia não se apague”, afirmou ele na quinta-feira 18. A
Transparência Internacional também entrou em cena ao classificar como
“intolerável” e “um grave precedente” a decisão dos ministros do tribunal. O
procurador da República João Paulo Lordelo chegou a dizer que um inquérito
judicial, civil, policial e universal, em que tudo se decide por ofício, faz o
Brasil se parecer com o Irã.
O
jornalista e médico Giovanni Battista Líbero Badaró é autor de um libelo pela
liberdade de imprensa – um livreto de 30 páginas escrito no longínquo ano de
1830. O texto fustigava D. Pedro I, imperador que se recusava a se submeter à
Constituição de 1824, outorgada por ele próprio. “Se não é a liberdade de
imprensa, que faça chegar os gemidos dos oprimidos ao ouvido dos imperantes,
quem o fará? ”. Líbero Badaró lembrava há quase dois séculos que não somente as
instituições políticas devem os seus maiores progressos à liberdade de
imprensa: “As artes, as ciências, a civilização toda é intimamente ligada a
ela”. Que ministros da mais alta corte do País jamais voltem a vilipendiar,
além da Constituição, as próprias páginas da história. STF, afaste da imprensa
esse “cale-se”.
(Com
IstoÉ)
Quinta-feira,
18 de abril, 2019 ás 20:55
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