"Sejamos
claros. A corrupção mata. O dinheiro desviado pela corrupção a cada ano é
suficiente para alimentar oitenta vezes a quantidade de famintos do
mundo". Estas palavras, pronunciadas pelo Alto Comissário de Direitos
Humanos da ONU, Navi Pillay, tornam clara a necessidade de enfrentarmos, com
firmeza, o maior câncer da humanidade.
Ao
comentar tal declaração, o Professor Mark Pieth, da Universidade de Basel
(Suíça), nos ensinou ser "correto que violações de direitos humanos e
corrupção frequentemente andam de mãos dadas". Concluiu, em seguida, que
"estratégias combinadas para combater a corrupção e promover os direitos
humanos podem atender as duas agendas".
É
quando sugiro descermos aos detalhes, à proposição de medidas concretas que,
reprimindo a corrupção, impeçam as violações de direitos humanos dela
decorrentes.
A
IMPRENSA LIVRE
É
aqui, defendendo o direito humano de acesso à informação, que deveremos travar
a maior de nossas batalhas contra a corrupção. Afinal, como disse Thomas
Jefferson, "onde a imprensa é livre e todo homem é capaz de ler tudo está
salvo".
A
imprensa não é livre quando vinculada a poderosos grupos econômicos, cujos
interesses quase sempre se sobrepõem aos da população. A imprensa não é livre
quando depende da ajuda financeira de governos. A imprensa não é livre quando
sujeita a uma censura disfarçada por parte do sistema legal. A imprensa não é
livre quando utilizada pelo poder político e econômico como instrumento de
dominação de países inteiros.
É
paradoxal: em tempos de Internet e globalização, a humanidade depara-se com sua
maior crise - a do acesso à informação. Olhem ao redor e percebam que, no
mundo, apenas uma a cada sete pessoas vive em países nos quais as notícias são
livremente divulgadas - e não estão incluídos neste cálculo os mecanismos mais
sutis de controle dos meios de comunicação, aos quais me referi, e nem os casos
de quase monopólio de divulgação de notícias.
A
consequência maior desta realidade é convivermos com o que eu chamo de
"corrupção geopolítica", responsável por milhões de mortos e
refugiados em guerras artificialmente provocadas e por crises econômicas
globais absurdas em causas e efeitos. A menor, é sofrermos, enquanto cidadãos,
com o declínio do padrão dos serviços públicos em geral.
Precisamos,
pois, enquanto humanidade, conceber leis que protejam a imprensa da influência
inadequada do poder político e econômico e dos mecanismos de censura
disfarçada. Leis que obriguem cada veículo de comunicação a informar a
população sobre as origens de seu faturamento. Leis que imponham ampla
transparência na atividade de estabelecer o que é e o que não é notícia. Leis
que impeçam práticas monopolistas nos meios de comunicação. Leis que obriguem a
divulgação dos vínculos profissionais dos formadores de opinião e de suas
famílias.
A
AUTORIDADE MORAL DAS INSTITUIÇÕES
É
fundamental, para a própria sobrevivência da raça humana, a preservação da
autoridade moral de suas instituições - e eis aí algo óbvio.
Nossas
instituições perdem a confiança do povo quando seus membros são escolhidos por
métodos obscuros ou injustos. Nossas instituições se desmoralizam quando seus
membros ficam sujeitos às benesses ou às vinganças do poder político ou
econômico. Nossas instituições são corroídas por dentro quando seus membros,
por falta de transparência, não são devidamente recompensados ou punidos.
Nossas instituições são alvo de escárnio quando os corruptos compram suas
inocências com a ajuda dos recursos que desviaram.
Eis
aí a outra crise que flagela a humanidade: a institucional. Contemplem o mundo
e percebam que mais da metade de sua população já não confia plenamente nas
instituições de seus países - seja naqueles mais miseráveis e primitivos ou nos
mais ricos e sofisticados.
O
custo desta crise é a crescente dificuldade de recrutarmos verdadeiros
defensores do bem - desde o mais humilde funcionário até a mais alta
autoridade. O exercício idealista e sério de uma função pública passou a ser
não mais uma profissão, mas um sacerdócio reservado a alguns poucos que se
dispõem a pagar elevado preço pessoal.
Mudar
isto é possível - basta que se torne absolutamente transparente a vida
profissional de cada habitante do mundo das leis, permitindo à população a
depuração e o aperfeiçoamento das instituições. Que seja obrigatória a
divulgação de todo valor gasto por empresas com autoridades, políticos ou
instituições, seja a que título for. Que se apure, com transparência, se
criminosa a origem dos recursos destinados por acusados de corrupção ao
pagamento de multas e defesas judiciais caríssimas. Que as instituições tenham
verdadeira independência orçamentária e financeira, com base em percentuais da
arrecadação, não mais ficando sujeitas a pressões de qualquer tipo.
A
EFICIÊNCIA DO MUNDO DAS LEIS
Já
data da antiguidade clássica o ensinamento de que não basta ter direitos - há
que se ter instrumentos para exercê-los.
Como
punirmos a grande corrupção, mãe das menores, quando as fortunas que gerou
transitam livremente entre países, rumo a paraísos fiscais? Como combatermos o
mal globalizado com armas regionalizadas? Como prevenirmos o crime quando a
cooperação entre autoridades, instituições e países é dificultada pela
burocracia?
Chegamos
à crise seguinte: a legal. Constatem que menos de 1% do que acontece nas ruas
chega ao mundo das leis, a cada dia mais desacreditado. Reparem que já não
temos como reprimir de forma eficiente o crime digital - seja a nível local ou
mundial, seja sob a forma de um simples vírus ou de um amplo ataque terrorista.
Nossos Estados, vítimas de uma burocracia criada para controlá-los, estão a
cada dia mais impotentes diante das exigências do momento histórico. E a
população, vítima da falta de transparência, não tem sequer como acompanhar de
forma adequada o andamento dos casos de maior interesse social - dentre eles os
relacionados à corrupção.
A
consequência é um quadro gravíssimo de impunidade para os poderosos e de
opressão para os fracos - afinal, alguém tem que ser punido para que todos
saibam que temos leis. E não nos esqueçamos de nós mesmos: vivemos menos, e
vivemos de forma pior, por conta deste quadro. Finalmente, esquecida pelas
leis, a realidade vinga-se ignorando-as, estimulando a barbárie mais cruel e
desumana.
Nós
temos como melhorar este quadro - a eliminação do excesso de burocracia e a
criação de mecanismos de cooperação seriam suficientes para reduzir os níveis
de impunidade. Ajudaria, igualmente, a divulgação clara sobre o que está em
atraso no mundo das leis, há quanto tempo e por culpa de qual profissional.
Para que a fiscalização possa ser perfeita, fundamental a criação de setores
específicos de repressão à corrupção e às violações de direitos humanos - na
justiça e na administração em geral - cujos responsáveis possam ser claramente
identificados e cobrados.
A
SOBRIEDADE DO MUNDO CORPORATIVO
Vivemos
no mundo das corporações gigantescas controladas por empregados que desconhecem
limites - e eis aí uma das maiores fontes conhecidas de corrupção e desrespeito
aos direitos humanos.
Na
África, milhões perdem suas vidas em guerras causadas pela ganância de empresas
que não desejam pagar o preço justo por recursos naturais. Na Europa e na Ásia,
milhões adoecem vítimas de níveis de poluição que somente a loucura do lucro a
qualquer custo explica. Nos EUA, outros milhões perdem suas casas e seus
empregos por conta da especulação financeira de algumas poucas corporações.
Esta
é a última das quatro grandes crises que a humanidade enfrenta: a corporativa.
Os empregados destes poderosos grupos econômicos, na busca insaciável por
lucros que lhes proporcionem salários e bônus milionários, tem corrompido nosso
sistema político, legal e até mesmo acadêmico.
Cito
dois exemplos. O primeiro vem da África, onde trava-se há anos uma guerra em
torno de um minério chamado "coltan", que já vitimou cinco milhões de
seres humanos, conforme dados da ONU. Foram identificadas 157 empresas
ocidentais envolvidas, e calculou-se que um telefone celular fabricado com
matéria-prima daquela região custa a vida de duas crianças. Pois bem: sequer
sabemos os nomes destas empresas!
O
segundo exemplo responde pelo nome de "crise econômica de 2008".
Custou milhões de empregos, retirou de milhões de seres humanos suas casas e a
esperança de uma velhice digna. As pessoas que a causaram, suportadas por um
pensamento acadêmico corrompido, acabaram milionárias e intocadas pelas
autoridades que deveriam nos proteger - e que ainda estão na administração
pública, apesar de acusadas de corrupção. Quem pagou por tamanho absurdo, ao
final das contas, fomos nós.
Sou
um defensor do capitalismo. Mas vejo claramente que a existência de empresas
"grandes demais para quebrar", geridas por empregados movidos a
salários proporcionais aos lucros que conseguem, são a maior fonte de desgraças
do mundo moderno. Não se pode, seriamente, falar em proteger direitos humanos e
prevenir corrupção sem que se enfrente este problema.
E
é possível enfrentá-lo, com leis limitando o tamanho e obrigando a
regionalização destas corporações, particularmente aquelas da área financeira,
e bem assim reduzindo a níveis normais a remuneração dos empregados que as
dirigem. Caso comprovado algum ato de corrupção, que seja penalizada também a
empresa, inclusive com a proibição de voltar a se relacionar com a
administração pública.
CONCLUSÃO
Todas
estas medidas são absolutamente simples e lógicas. Não demandam grandes estudos
ou pesquisas. Estão ao nosso alcance. Podem ser facilmente implantadas em todo
o mundo. E evitariam, ao prevenir incontáveis casos de corrupção, graves
violações a direitos humanos. No entanto, nenhum de nós viverá o suficiente
para ver sequer uma delas implementada. Nenhum de nós.
Isto
porque enfrentamos, aqui, em verdade, o mal em sua essência mais pura. E este
não é daqueles combates a serem vencidos por uma única geração. Ele confunde-se
com a própria saga da humanidade através dos tempos.
Mas
que isto não nos cause desânimo. Não estamos sendo derrotados. Só não temos
percebido, talvez, que o nosso tempo não é o de Deus. Que estamos, na verdade,
apenas trilhando um caminho que recebemos de outros, e abrindo, com nobreza,
novos horizontes para os que nos sucederão - afinal, como dizia Benjamim
Disraeli, "a vida é curta demais para ser pequena".
***Pedro
Valls Feu Rosa é desembargador do Tribunal de Justiça do Espírito Santo.
Sexta-feira, 22 de janeiro, 2016
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