Liberdade de expressão

“É fácil submeter povos livres: basta retirar – lhes o direito de expressão”. Marechal Manoel Luís Osório, Marquês do Erval -15 de abril de 1866

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23 agosto, 2019

O monarca, o príncipe e a reação



Para proteger o próprio filho, Bolsonaro semeou intervenções nos órgãos de combate à corrupção e ameaçou atropelar o ministro Sergio Moro. Agora, está colhendo tempestade: servidores públicos vão às ruas em protesto contra a ingerência presidencial e até o PSL cogita contrariar as recomendações do Planalto

No brilhante ensaio filosófico “A Rebelião das Massas”, Ortega y Gasset não distingue elite e massas pelo sentido socioeconômico. Pelo contrário, como na doutrina hindu das castas e dharmas, atesta que há homens da elite entre os proletários e homens-massa na chamada classe dominante. Pois os nossos homens-massa estão embebidos em fúria. O autoritarismo de Jair Bolsonaro, ao perseguir e substituir funcionários públicos que de uma forma ou de outra investigaram malfeitos de seu filho, o senador Flávio Bolsonaro, deu vazão a uma verdadeira rebelião nos órgãos de combate ao crime organizado e lavagem de dinheiro. A ação do presidente foi interpretada como um claro boicote à Lava Jato. Por isso, protestos contra a interferência do presidente na direção dessas instituições deixaram os ambientes herméticos dos gabinetes e ganharam as ruas nesta quarta-feira 21, sob um lema sintomático: “Dia Nacional de Luto”. Centenas de servidores dos órgãos atingidos pela sanha persecutória do presidente manifestaram-se contra o governo, promovendo atos em todo o País e até defronte o Ministério da Economia. Alguns funcionários com cargos de chefia ameaçam deixar as funções. Já há rumores, inclusive, que esses órgãos, sobretudo Receita Federal e Polícia Federal, podem paralisar serviços essenciais, como emissão de CPFs e de passaportes, em retaliação às represálias do Planalto. O presidente mexeu em uma caixa de marimbondos e pode sobrar ferroadas até para o ministro da Justiça, Sergio Moro, que indicou a maior parte dos atingidos pelo garrote de Bolsonaro. Para aliados de Moro, está cada vez mais claro que a “carta branca” dada pelo presidente ao ministro não era tão branca assim. No final da semana, o caldo que já estava fervendo, entornou de vez. Ao reafirmar seu espírito de manda-chuva, Bolsonaro foi explícito. Em tom por vezes irônico, disse que trocaria os servidores que bem entendesse e de novo lançou mão do seu espantalho predileto, o PT, ao dizer que assumiu “um estado todo aparelhado”. “Eu sou presidente para interferir mesmo. Se for para ser um poste, um banana, estou fora”, resumiu o soberano presidente.

“Se eu trocar (o diretor-geral da PF) hoje qual o problema? Está na lei que eu que indico e não o Sergio Moro. e ponto final” Bolsonaro, presidente da República

Bolsonaro referia-se às mudanças planejadas na Polícia Federal do Rio, por julgar que o delegado Ricardo Saadi, chefe da superintendência fluminense, contribuiu, de alguma forma, para investigar a “verdadeira imobiliária” que Flávio Bolsonaro montou no Rio. Embora o senador tenha declarado bens no valor de R$ 1,7 milhão em 2018, comprou e vendeu 19 imóveis, entre salas e apartamentos, orçados em R$ 9,4 milhões, com os quais obteve um lucro de R$ 3 milhões. Para substituir Saadi, Bolsonaro atropelou o diretor-geral da PF, Maurício Valeixo, outro indicado por Moro. Exigiu que o novo superintendente do Rio fosse o delegado Alexandre Silva Saraiva, de Manaus (AM), ao passo que Valeixo queria emplacar Carlos Henrique Oliveira Souza, superintendente de Recife (PE). A guerra de braço ganhou a luz do Sol: todos os superintendentes da PF no País ameaçaram deixar os cargos caso Bolsonaro consolidasse a mudança, com desmedida interferência no órgão. É uma tradição na PF: o ministro da Justiça indica o diretor-geral e, este, todos os superintendentes, sem intromissão. Mas até com essa liturgia o presidente quer acabar. Questionado sobre o tema na tarde de quinta-feira 21, respondeu: “Se eu trocar (o diretor-geral da PF) hoje qual o problema? Está na lei que sou eu que indico e não Sergio Moro. E ponto final”. Na PF, a declaração caiu como uma bomba. Os agentes interpretaram que Bolsonaro subiu mais um tom na já estremecida relação com Moro. Não será surpresa se o ministro pedir para deixar o cargo. Corda esgarçada, membros da PF pleiteiam agora mandato fixo para o futuro chefe da instituição.


Na verdade, ao transpor escalas hierárquicas e intervir com mão pesada em movimentações de cargos de direção na PF, na Receita e no Coaf, Bolsonaro deixa claro o propósito de punir servidores cuja ação, por dever de ofício, causou constrangimentos a familiares seus. Em especial, o filho Flávio. Ao reagirem com contundência, as corporações não apenas defendem o futuro da Lava Jato. Elas acertadamente resolvem não dobrar a espinha aos arroubos do mandatário do País, o que nos faria retroceder a tempos em que as organizações políticas eram fundadas em regras rudimentares.


O primeiro ataque de Bolsonaro às instituições federais concentrou-se no Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), identificado pelo presidente como “um ninho de cobras” de onde teriam partido as informações que revelaram as movimentações financeiras atípicas do filho Flávio e de seu motorista Fabrício Queiroz. O Coaf transmitiu os dados ao Ministério Público do Rio, dentro da Operação Furna da Onça, que constatou irregularidades cometidas por dezenas de deputados estaduais do Rio, incluindo Flávio quando ele era deputado estadual carioca, dando início a uma dor de cabeça sem tamanho para a família Bolsonaro. Não só porque Queiroz não soube explicar como obteve os R$ 7 milhões registrados em contas particulares, mas porque levantou suspeitas de que o dinheiro também poderia abastecer as arcas do próprio Flávio e, por conseqüência, do presidente. Afinal, Bolsonaro e Queiroz eram amigos há 34 anos e entre os depósitos registrados pelo Coaf estavam um de R$ 24 mil para a primeira-dama Michelle. Tudo bem que essa ação do Coaf foi feita no governo anterior, mas o que irritou profundamente Bolsonaro foi que quando o presidente Dias Toffoli, do STF, a pedido de Flávio, suspendeu a investigação, o então presidente do Coaf, Roberto Leonel, indicado por Moro para o cargo, condenou a decisão, sob a alegação de que ela lesava o combate à lavagem de dinheiro. Foi a gota d’água para Bolsonaro passar a exigir a cabeça de Leonel, deixando Moro em maus lençóis. Afinal, Leonel era da Operação Lava Jato em Curitiba e ajudou o ex-juiz do Paraná a levar muita gente para a cadeia.


Bolsonaro fez muito mais do que demitir Leonel. Por Medida Provisória, transferiu, na segunda-feira 19, o Coaf para o Banco Central e mudou o nome da instituição para Unidade de Inteligência Financeira (UIF). Para o lugar de Leonel, foi nomeado Ricardo Liáo, atual diretor de supervisão do antigo Coaf. Com isso, o presidente matou vários coelhos com uma só cajadada: tirou o Coaf do foco das investigações sobre o filho e enfraqueceu a posição de Moro, que andava ávido por colocar a mão nos dados da entidade, onde Leonel era elo fundamental. Sem dinheiro, integrantes do órgão alertaram para o risco de não poder mais fazer relatórios. Pelo visto, não interessa nem a Bolsonaro e nem a parlamentares investigados por corrupção ter uma entidade de combate à corrupção tão independente. Não à toa, a presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia Federal do Estado de São Paulo (Sindpesp), Raquel Kobashi Gallinati, reagiu. Disse que a transferência do Coaf para o BC “é mais um duro golpe no combate a crimes de corrupção e lavagem de dinheiro”.


Afastamento de auditores


Na Receita Federal, o presidente mantém a toada de cutucar o Leão com vara curta. Quer neutralizar a ação moralizadora do órgão, que andou levantando dados sobre declarações de renda de pessoas que se consideram acima da lei, ou “semideuses”, como disse o senador Major Olímpio, líder do PSL no Senado. Só isso explicaria o afastamento de dois auditores que teriam entrado em declarações do ministro do STF, Gilmar Mendes, de sua mulher Guiomar Mendes, para analisar dados incompatíveis, e do presidente do Supremo, Dias Toffoli, com quem o presidente celebrou um pacto pela governabilidade.


Chefias também estão sendo trocadas, como foi o caso de João Paulo Ramos Fachada, defenestrado do cargo de subsecretário-geral. A Receita, segundo os bastidores da entidade, teria bisbilhotado declarações do irmão do presidente Renato Bolsonaro. No lugar de Fachada, deve assumir José de Assis Ferraz Neto, auditor fiscal em Recife (PE). A Unafisco (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal) promete resistir. “Queremos que a Receita questione a decisão do STF de afastar os dois auditores, reintegrando-os aos cargos. Exigimos também que o governo pare com interferências políticas na administração pública“, disse Mauro Silva, presidente da entidade.

Agindo menos como presidente do que como um interventor, Bolsonaro não conhece limites. Parece dominar a arte de meter o bedelho em tudo, como se tudo pudesse, como se um déspota absolutista fosse – e todos nós os seus súditos. Há, por exemplo, um parentesco óbvio entre os casos da PF, Receita, Ibama, Fiocruz, BNDES e Ancine: em todos houve a intromissão sem qualquer pudor de Bolsonaro. Nos últimos dias, o mandatário deixou patente que ainda não desistiu de submeter aos seus inconfessáveis interesses os procuradores do Ministério Público Federal: ele quer nomear um novo “engavetador-geral da República”, como era conhecido o tucano Geraldo Brindeiro, para a Procuradoria-Geral da República (PGR), em substituição à Raquel Dodge, que deixa o cargo dia 17. Bolsonaro declarou que não tem obrigação nenhuma de respeitar a lista tríplice votada pelos procuradores da República que apontaram o procurador Mário Bonsaglia como o candidato da categoria. Para coroar o cerco aos órgãos de investigação, Bolsonaro tende a indicar o subprocurador Antonio Carlos Simões Martins Soares, predileto do senador Flávio Bolsonaro. Como Soares anda se desgastando neste período pré-indicação, ainda é possível que o presidente incline-se pelo subprocurador Augusto Aras, igualmente palatável ao bolsonarismo.


A mão pesada do presidente em corporações que compõem hoje a quintessência do combate à corrupção vai na direção oposta àquela que fundamentou sua campanha presidencial. Se continuar a agir assim, corre o risco de colher tempestade – ou seja, o abandono do eleitorado que um dia acreditou no seu comprometimento contra os malfeitos. O próprio PSL já cogita começar a contrariar as recomendações do Palácio do Planalto. Principalmente, se o projeto de abuso de autoridade, que hoje já impacta em mais de 130 investigações, não for vetado em sua integralidade. Teimoso como os fatos que costumam desmenti-lo, Bolsonaro parece gostar de brincar perto do precipício. A perseguir o abismo, estará certo Ortega y Gasset, quando, no prefácio de “Rebelião das Massas”, disse que ser de esquerda é como ser de direita. Ambas são formas de hemiplegia moral. (IstoÉ)

Sexta-feira, 23 de agosto ás 9:30

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