Para
proteger o próprio filho, Bolsonaro semeou intervenções nos órgãos de combate à
corrupção e ameaçou atropelar o ministro Sergio Moro. Agora, está colhendo
tempestade: servidores públicos vão às ruas em protesto contra a ingerência
presidencial e até o PSL cogita contrariar as recomendações do Planalto
No
brilhante ensaio filosófico “A Rebelião das Massas”, Ortega y Gasset não
distingue elite e massas pelo sentido socioeconômico. Pelo contrário, como na
doutrina hindu das castas e dharmas, atesta que há homens da elite entre os
proletários e homens-massa na chamada classe dominante. Pois os nossos
homens-massa estão embebidos em fúria. O autoritarismo de Jair Bolsonaro, ao
perseguir e substituir funcionários públicos que de uma forma ou de outra
investigaram malfeitos de seu filho, o senador Flávio Bolsonaro, deu vazão a
uma verdadeira rebelião nos órgãos de combate ao crime organizado e lavagem de
dinheiro. A ação do presidente foi interpretada como um claro boicote à Lava
Jato. Por isso, protestos contra a interferência do presidente na direção
dessas instituições deixaram os ambientes herméticos dos gabinetes e ganharam
as ruas nesta quarta-feira 21, sob um lema sintomático: “Dia Nacional de Luto”.
Centenas de servidores dos órgãos atingidos pela sanha persecutória do
presidente manifestaram-se contra o governo, promovendo atos em todo o País e
até defronte o Ministério da Economia. Alguns funcionários com cargos de chefia
ameaçam deixar as funções. Já há rumores, inclusive, que esses órgãos,
sobretudo Receita Federal e Polícia Federal, podem paralisar serviços
essenciais, como emissão de CPFs e de passaportes, em retaliação às represálias
do Planalto. O presidente mexeu em uma caixa de marimbondos e pode sobrar
ferroadas até para o ministro da Justiça, Sergio Moro, que indicou a maior
parte dos atingidos pelo garrote de Bolsonaro. Para aliados de Moro, está cada
vez mais claro que a “carta branca” dada pelo presidente ao ministro não era
tão branca assim. No final da semana, o caldo que já estava fervendo, entornou
de vez. Ao reafirmar seu espírito de manda-chuva, Bolsonaro foi explícito. Em
tom por vezes irônico, disse que trocaria os servidores que bem entendesse e de
novo lançou mão do seu espantalho predileto, o PT, ao dizer que assumiu “um
estado todo aparelhado”. “Eu sou presidente para interferir mesmo. Se for para
ser um poste, um banana, estou fora”, resumiu o soberano presidente.
“Se eu trocar (o diretor-geral da PF) hoje qual o problema? Está na
lei que eu que indico e não o Sergio Moro. e ponto final” Bolsonaro, presidente
da República
Bolsonaro
referia-se às mudanças planejadas na Polícia Federal do Rio, por julgar que o
delegado Ricardo Saadi, chefe da superintendência fluminense, contribuiu, de
alguma forma, para investigar a “verdadeira imobiliária” que Flávio Bolsonaro
montou no Rio. Embora o senador tenha declarado bens no valor de R$ 1,7 milhão
em 2018, comprou e vendeu 19 imóveis, entre salas e apartamentos, orçados em R$
9,4 milhões, com os quais obteve um lucro de R$ 3 milhões. Para substituir
Saadi, Bolsonaro atropelou o diretor-geral da PF, Maurício Valeixo, outro
indicado por Moro. Exigiu que o novo superintendente do Rio fosse o delegado
Alexandre Silva Saraiva, de Manaus (AM), ao passo que Valeixo queria emplacar
Carlos Henrique Oliveira Souza, superintendente de Recife (PE). A guerra de
braço ganhou a luz do Sol: todos os superintendentes da PF no País ameaçaram
deixar os cargos caso Bolsonaro consolidasse a mudança, com desmedida
interferência no órgão. É uma tradição na PF: o ministro da Justiça indica o
diretor-geral e, este, todos os superintendentes, sem intromissão. Mas até com
essa liturgia o presidente quer acabar. Questionado sobre o tema na tarde de
quinta-feira 21, respondeu: “Se eu trocar (o diretor-geral da PF) hoje qual o
problema? Está na lei que sou eu que indico e não Sergio Moro. E ponto final”.
Na PF, a declaração caiu como uma bomba. Os agentes interpretaram que Bolsonaro
subiu mais um tom na já estremecida relação com Moro. Não será surpresa se o
ministro pedir para deixar o cargo. Corda esgarçada, membros da PF pleiteiam
agora mandato fixo para o futuro chefe da instituição.
Na
verdade, ao transpor escalas hierárquicas e intervir com mão pesada em
movimentações de cargos de direção na PF, na Receita e no Coaf, Bolsonaro deixa
claro o propósito de punir servidores cuja ação, por dever de ofício, causou
constrangimentos a familiares seus. Em especial, o filho Flávio. Ao reagirem
com contundência, as corporações não apenas defendem o futuro da Lava Jato.
Elas acertadamente resolvem não dobrar a espinha aos arroubos do mandatário do
País, o que nos faria retroceder a tempos em que as organizações políticas eram
fundadas em regras rudimentares.
O
primeiro ataque de Bolsonaro às instituições federais concentrou-se no Coaf
(Conselho de Controle de Atividades Financeiras), identificado pelo presidente
como “um ninho de cobras” de onde teriam partido as informações que revelaram
as movimentações financeiras atípicas do filho Flávio e de seu motorista
Fabrício Queiroz. O Coaf transmitiu os dados ao Ministério Público do Rio,
dentro da Operação Furna da Onça, que constatou irregularidades cometidas por
dezenas de deputados estaduais do Rio, incluindo Flávio quando ele era deputado
estadual carioca, dando início a uma dor de cabeça sem tamanho para a família
Bolsonaro. Não só porque Queiroz não soube explicar como obteve os R$ 7 milhões
registrados em contas particulares, mas porque levantou suspeitas de que o
dinheiro também poderia abastecer as arcas do próprio Flávio e, por
conseqüência, do presidente. Afinal, Bolsonaro e Queiroz eram amigos há 34 anos
e entre os depósitos registrados pelo Coaf estavam um de R$ 24 mil para a
primeira-dama Michelle. Tudo bem que essa ação do Coaf foi feita no governo
anterior, mas o que irritou profundamente Bolsonaro foi que quando o presidente
Dias Toffoli, do STF, a pedido de Flávio, suspendeu a investigação, o então
presidente do Coaf, Roberto Leonel, indicado por Moro para o cargo, condenou a
decisão, sob a alegação de que ela lesava o combate à lavagem de dinheiro. Foi
a gota d’água para Bolsonaro passar a exigir a cabeça de Leonel, deixando Moro
em maus lençóis. Afinal, Leonel era da Operação Lava Jato em Curitiba e ajudou
o ex-juiz do Paraná a levar muita gente para a cadeia.
Bolsonaro
fez muito mais do que demitir Leonel. Por Medida Provisória, transferiu, na
segunda-feira 19, o Coaf para o Banco Central e mudou o nome da instituição
para Unidade de Inteligência Financeira (UIF). Para o lugar de Leonel, foi
nomeado Ricardo Liáo, atual diretor de supervisão do antigo Coaf. Com isso, o
presidente matou vários coelhos com uma só cajadada: tirou o Coaf do foco das
investigações sobre o filho e enfraqueceu a posição de Moro, que andava ávido
por colocar a mão nos dados da entidade, onde Leonel era elo fundamental. Sem
dinheiro, integrantes do órgão alertaram para o risco de não poder mais fazer
relatórios. Pelo visto, não interessa nem a Bolsonaro e nem a parlamentares
investigados por corrupção ter uma entidade de combate à corrupção tão
independente. Não à toa, a presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia
Federal do Estado de São Paulo (Sindpesp), Raquel Kobashi Gallinati, reagiu.
Disse que a transferência do Coaf para o BC “é mais um duro golpe no combate a
crimes de corrupção e lavagem de dinheiro”.
Afastamento
de auditores
Na
Receita Federal, o presidente mantém a toada de cutucar o Leão com vara curta.
Quer neutralizar a ação moralizadora do órgão, que andou levantando dados sobre
declarações de renda de pessoas que se consideram acima da lei, ou
“semideuses”, como disse o senador Major Olímpio, líder do PSL no Senado. Só
isso explicaria o afastamento de dois auditores que teriam entrado em
declarações do ministro do STF, Gilmar Mendes, de sua mulher Guiomar Mendes,
para analisar dados incompatíveis, e do presidente do Supremo, Dias Toffoli,
com quem o presidente celebrou um pacto pela governabilidade.
Chefias
também estão sendo trocadas, como foi o caso de João Paulo Ramos Fachada,
defenestrado do cargo de subsecretário-geral. A Receita, segundo os bastidores
da entidade, teria bisbilhotado declarações do irmão do presidente Renato
Bolsonaro. No lugar de Fachada, deve assumir José de Assis Ferraz Neto, auditor
fiscal em Recife (PE). A Unafisco (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da
Receita Federal) promete resistir. “Queremos que a Receita questione a decisão
do STF de afastar os dois auditores, reintegrando-os aos cargos. Exigimos
também que o governo pare com interferências políticas na administração
pública“, disse Mauro Silva, presidente da entidade.
Agindo
menos como presidente do que como um interventor, Bolsonaro não conhece
limites. Parece dominar a arte de meter o bedelho em tudo, como se tudo
pudesse, como se um déspota absolutista fosse – e todos nós os seus súditos.
Há, por exemplo, um parentesco óbvio entre os casos da PF, Receita, Ibama,
Fiocruz, BNDES e Ancine: em todos houve a intromissão sem qualquer pudor de
Bolsonaro. Nos últimos dias, o mandatário deixou patente que ainda não desistiu
de submeter aos seus inconfessáveis interesses os procuradores do Ministério
Público Federal: ele quer nomear um novo “engavetador-geral da República”, como
era conhecido o tucano Geraldo Brindeiro, para a Procuradoria-Geral da
República (PGR), em substituição à Raquel Dodge, que deixa o cargo dia 17.
Bolsonaro declarou que não tem obrigação nenhuma de respeitar a lista tríplice
votada pelos procuradores da República que apontaram o procurador Mário
Bonsaglia como o candidato da categoria. Para coroar o cerco aos órgãos de
investigação, Bolsonaro tende a indicar o subprocurador Antonio Carlos Simões
Martins Soares, predileto do senador Flávio Bolsonaro. Como Soares anda se
desgastando neste período pré-indicação, ainda é possível que o presidente
incline-se pelo subprocurador Augusto Aras, igualmente palatável ao bolsonarismo.
A
mão pesada do presidente em corporações que compõem hoje a quintessência do
combate à corrupção vai na direção oposta àquela que fundamentou sua campanha
presidencial. Se continuar a agir assim, corre o risco de colher tempestade –
ou seja, o abandono do eleitorado que um dia acreditou no seu comprometimento
contra os malfeitos. O próprio PSL já cogita começar a contrariar as
recomendações do Palácio do Planalto. Principalmente, se o projeto de abuso de
autoridade, que hoje já impacta em mais de 130 investigações, não for vetado em
sua integralidade. Teimoso como os fatos que costumam desmenti-lo, Bolsonaro
parece gostar de brincar perto do precipício. A perseguir o abismo, estará
certo Ortega y Gasset, quando, no prefácio de “Rebelião das Massas”, disse que
ser de esquerda é como ser de direita. Ambas são formas de hemiplegia moral.
(IstoÉ)
Sexta-feira,
23 de agosto ás 9:30
Nenhum comentário:
Postar um comentário