Viva a turbulência causada
pelo antropólogo Antonio Risério ao defender, na Folha, a existência de racismo
de negros contra os brancos. As reações trouxeram os raríssimos ares de debate
público. Ainda que desequilibrado nas partes divergentes, feito mais de
acusações do que argumentos e com um desvio temático não menos trovejante.
Os negros do Brasil têm todo o
direito, ainda por hoje e não pelos antepassados, aos piores sentimentos em sua
avaliação dos brancos. Tal como os negros dos Estados Unidos e da África, além
de numerosas comunidades menores. Por isso, creio, no quesito racismo negro
seria necessário, antes de tudo, definir-lhe com nitidez a essência. Ficar no
“neorracismo identitário” é genérico demais, fluido demais para sustentar uma
caracterização moral e cultural tão pesada.
O ressentimento e a raiva, por
exemplo, induzidos pela discriminação e por tantas formas de opressão
humilhantes, não são necessariamente racismo. Não seria raro nem difícil
reconhecer-lhes até uma defesa instintual e humanamente sadia. Ao passo que o
racismo teria componentes mais elaborados na formação e na manifestação.
O debate reativo a Risério
mostra mais uma vez quanto o racismo brasileiro, que não se limita ao negro, é
tema incendiário. E também mostra o avanço negro, instigado pela Constituição
de 88, em muitos espaços e sonoridades. Para a “elite” negra, a desigualdade
adquiriu características próprias, em nada compartilhadas pelos demais. A estes
milhões, eventuais apoios são de pioneiros, a exemplo de Luiza Trajano e seu
magazine.
É deplorável, por isso, que
não haja dos já vitoriosos mais do que a persistência na crítica e nas
acusações de racismo, sem ação efetiva de luta contra o racismo econômico e
social.
Para um exemplo que represente
todos, a menor remuneração a negros por serem negros, declarada até por meios
oficiais, é tão instituída quanto monstruosa —uma deformação não apenas
socioeconômica, mas também da qualidade humana de quem a pratica.
A aspereza de algumas reações
a Risério e a outros comentaristas não foi de debate. O problema é grave
demais, enraizado demais, tem dimensões e complexidade demais. É compreensível
que se preste a extravasar ímpetos reprimidos.
O racismo está entre os males
que exigem mesmo um enfrentamento vigoroso, furioso até o velho e esquecido
vai-ou-racha de tantos passos civilizatórios. Mas não é preciso que alguns
mal-entendidos fiquem pelo caminho.
Reconheço-me como crítico inconveniente, desde
sempre, de todos os jornais que conheci. Não me contive nessa atitude, nem dela
me arrependo, por entendê-la em todos os sentidos essencial a uma atividade
dada a não fazer o que cobra. Pouco caprichosa e presa a vícios caquéticos.
Na grande maioria do
jornalismo mundo afora, o leitor/espectador é entidade de interesse secundário,
ou menos. Há um estranho prazer em ser jornalista, não como o do médico ou do
arquiteto. E, em todas as línguas, esse prazer parece bastar-nos.
A publicação me pareceu
correta. Várias críticas atribuíram-na à busca de sensacionalismo pela Folha.
Desde muito tempo, a Folha tem, sim, uma queda por polêmicas e questões com
potencial sensacionalista. É fruto da ideia de que assim afirma independência e
neutralidade aos olhos dos leitores. É engano. O resultado comum das polêmicas
é satisfação de um lado compensada pelo desagrado do outro. Na Folha, a
neutralização mútua tem ficado bem à vista em manifestações de leitores.
No caso do artigo de Risério,
é certo que não houve intenção viciosa. Já porque o texto não oferecia o conveniente
para tanto. Seu título no jornal foi até anódino,”Neorracismo identitário”.
O sensacionalismo precisa de
um título atraente ou, no mínimo, acessível ao leitor, digamos, médio. Não do
teor acadêmico adotado, universitário, que há bastante tempo é outro
desentendimento da Folha com o jornalismo.
Diretor de Redação, Sérgio
Dávila ficou confundido com o cargo, ou com a maneira como, a seu ver, deve
exercê-lo. Dávila recebeu pronta a inflexão da Folha —decisão empresarial— para
os limites do centro-direita.
Se o jornal ali está em
quarentena, por um equívoco analítico e de composição da equipe, ou se ali está
para ficar, não foi definido. Mas o reconhecimento desse erro estratégico, que
renegou a busca de equilíbrio consagradora do jornal, não inclui tolerância com
o racismo, qualquer racismo. Nem com outros horrores do gênero.
Tem havido alguma censura interna, sim,
seletividade ideológica, idiossincrasias, coisas que prejudicam mais o jornal
do que as vítimas. Mas antecedem Sérgio Dávila, que, a ser criticado, pode
sê-lo por não ter atacado (ainda?) essa realidade. Às vezes, até por defendê-la
como convém ao seu cargo. Assim é a minha visão, da Folha que conheço há mais
de 40 anos, de uma pessoa que conheço há quase outro tanto, e deste momento admirável.
A turbulência decorrente do
tal artigo é muito benfazeja. Fez transbordarem conceitos e sentimentos
reprimidos, abertura para mais. Fará bem aos leitores. E fez um bem
incalculável ao jornalismo brasileiro: o manifesto com cerca de 200 signatários
da Folha, questionando os espaços dados a posições racistas e outras de
semelhante indignidade, as escolhas de colaboradores de vezo antidemocrático,
já é um marco, como disse Cristina Serra, tão brilhante.
Os manifestantes vêm dizer que
são jornalistas com vida, são gente, não são robôs. São pessoas, são
jornalistas que querem jornalismo. E querem a Folha viva como Folha. Sua
atitude lúcida e corajosa é um despertar luminoso.
* Folha
Domingo 23, 22 de janeiro 2022
às 16:57
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