Grávida
e mãe de 2 outros filhos, Mariana* decidiu que não vai vacinar a família contra
a covid-19. Ela diz que não nega a ciência, mas que acredita na força de cura
do corpo. “Mas não falamos abertamente sobre isso, por orientação do nosso
médico homeopata“, complementa Mariana, que nunca imunizou os filhos, mas tem
um atestado que alega, falsamente, que os filhos seriam alérgicos.
O
caso é visto com preocupação pela Sociedade Brasileira de Imunização (SBIm). “É
uma atitude lastimável. Isso é crime de ética. A própria Associação Médica
Homeopática Brasileira não tolera isso e apoia o calendário de vacinação“,
critica Isabella Ballalai, vice-presidente da SBIm que integra o grupo
consultivo Vaccine Safety Net, da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Com
mais de 186 mil mortes por covid-19 e com a perspectiva de frear a pandemia com
alguns imunizantes em negociação, o Brasil vê a resistência à vacina crescer.
Segundo levantamento do Instituto Datafolha, o percentual de brasileiros
dispostos a se vacinar contra a doença caiu de 89% na primeira quinzena de
agosto para 73% em dezembro, e cresceu de 9% para 22% a parcela de pessoas que
declaram que não querem tomar vacina.
O
potencial estrago de um movimento antivacina é conhecido. Em todo o mundo,
estima-se que a imunização contra doenças salve cerca de 3 milhões de pessoas
por ano, ou seja, 5 pessoas a cada minuto.
“Desconfiar
das vacinas ou não aderir às campanhas pode levar a perdas irreparáveis“,
afirma Luiz Carlos Dias, professor do Instituto de Química da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp) e membro da força-tarefa da universidade no
combate à covid-19.
Diante
desse cenário, o Supremo
Tribunal Federal (STF) decidiu na última quinta-feira (17.dez.2020) que
estados e municípios podem criar leis de obrigatoriedade da vacina contra o
coronavírus e definir restrições a quem desobedecer. O resultado foi criticado
pelo presidente Jair Bolsonaro, que já disse publicamente que não irá se
vacinar e pretende exigir
termo de responsabilidade de quem tomar vacina.
“É um cenário muito difícil. Precisamos
de falas de confiança que sejam coerentes com o que a ciência diz. E a ciência
está sendo atropelada no Brasil durante toda essa pandemia“,
critica Ballalai.
Para
SBIm, posicionamentos equivocados como o de Bolsonaro minam a confiança da
população e servem como combustível para os que se negam a receber
vacinas.
Antes
mesmo da chegada da pandemia, o crescente movimento antivacina já tinha efeitos
no Brasil. Considerado um modelo para o mundo pela capacidade de promover
vacinação em massa, por meio do Programa Nacional de Imunização (PNI), o país
passou a registrar retrocessos.
A
volta do sarampo, doença viral que ataca o trato respiratório e é
potencialmente grave em crianças menores de 5 anos, é um exemplo. Depois de 2
anos de certificação de erradicação dado pela Organização Pan-americana de
Saúde (Opas), o Brasil sofreu com um surto do vírus em 2018 e perdeu, no ano
seguinte, o status.
Em
2019, foram mais de 18 mil casos confirmados e 15 mortes por sarampo. Naquele
ano, a meta de vacinação ficou longe de ser alcançada. Entre crianças de 2 a 4
anos foram 100.676 doses aplicadas – contra 824.190 não vacinados.
“Um pouco dessa queda da cobertura se
deve ao movimento antivacina. Eles pensam que as doenças desapareceram. Eles
não veem [as doenças] porque
são as vacinas que justamente protegem as pessoas“, argumenta Dias.
Uma
parte dessa hesitação, alega Dias, é muito influenciada por curas naturais, por
uma vida livre de química, já que vacinas são produtos sintéticos, como
medicamentos.
“Quando nascemos, a gente adquire uma
imunidade inata do leite materno, que defende a gente de boa parte das doenças.
Mas não das fatais, como poliomielite, caxumba, rubéola“, explica o
químico, pontuando que, só no século passado, 350 mil pessoas no mundo morreram
de varíola, que foi erradicada por causa da vacina.
“Não sou contra os hábitos saudáveis de
alimentação. Eles ajudam, mas não defendem a gente da covid-19“,
acrescenta.
Mariana
começou a questionar o uso de vacinas após ouvir os argumentos do médico
homeopata que trata a família, há 7 anos, quando o primeiro filho nasceu. “Ele falou sobre interesses econômicos
das farmacêuticas e dizia que doenças infantis ajudam a amadurecer o corpo da
criança“, diz.
As
informações que ela recebe vêm principalmente de páginas secretas numa rede
social, traduzidas de outras línguas. Por outro lado, ela confessa que não
checa tudo o que lê.
Ballalai,
que é pediatra, diz que a maior parte do conteúdo que alimenta os grupos antivacina
vem de fora. “Cerca de 50% das
informações difundidas aqui são importadas da Europa e Estados Unidos“,
pontua a médica.
Os
dados fazem parte de uma pesquisa divulgada em 2019 pela Avaaz e a SBIm com o
objetivo de investigar o elo entre a desinformação e a queda nas coberturas
vacinais. A pesquisa, feita pelo Ibope com uma amostra de 2.002 pessoas,
mostrou ainda que 7 em cada 10 brasileiros acreditam em alguma informação falsa
relacionada a vacinas.
Do
total de entrevistados, 13% disseram que não se vacinaram ou não vacinaram uma criança
sob seus cuidados. Entre os motivos estão falta de planejamento ou
esquecimento; argumentos como “não
achei que a vacina fosse necessária”, o que a SBIm considera
desinformação; falta de informação e medo de efeitos colaterais graves – algo
que também é considerado desinformação.
“Percebemos que a rede que dissemina a
desinformação é bem formada, é profissional. E com o cenário que a gente está
vivendo hoje, de negação da ciência e disputa política, isso está piorando“,
avalia Ballalai.
Para
Dias, da Unicamp, a atuação do movimento antivacina é “absolutamente irresponsável, criminosa“,
principalmente em meio a uma emergência mundial. “Covid-19 não é uma questão individual, é uma questão de
saúde coletiva. Se não tivermos uma imunização em massa, nós não atingiremos
uma imunidade coletiva necessária“, afirma o pesquisador.
Embora
o plano
nacional de vacinação contra covid-19 ainda não tenha uma data
para o início da imunização, a SBIm alega que esta é a única possibilidade de
controle da pandemia.
“As vacinas vêm principalmente para
diminuir mortes, hospitalizações e casos graves. Mas não será o fim da doença,
2021 será ainda um ano de distanciamento social, de não aglomeração e uso de
máscaras“, ressalta Ballalai.
*Nome fictício usado na
reportagem a pedido da entrevistada.
(MSN)
Segunda-feira,
21 de dezembro, 2020 ás 12:20