Continuamos a fase mediúnica da Justiça brasileira, quando se arquiva um processo porque ele certamente prescreverá no seu decorrer e se condena alguém pelo que poderia fazer caso acontecesse isso ou aquilo. Tudo faz parte, no entanto, de um esquema organizado para liberar condenados e condenar os que os condenaram.
E tudo dentro da lei, “com $upremo, com tudo”, como previa o ex-deputado Romero Jucá. Ele, por sinal, anda livre, leve e solto fazendo política em Brasília, embora tenha sido derrotado mais uma vez na eleição de seu estado. A Justiça não o apanhou, mas o eleitor, sim.
No primeiro caso, a título de exemplo, Lule não pode mais ser punido pelo caso do tríplex do Guarujá, pois o Ministério Público Federal alegou que, com os prazos prescricionais reduzidos pela metade, já que ele tem mais de 70 anos, os crimes de que é acusado — lavagem de dinheiro, corrupção ativa e passiva — já estariam prescritos se um novo julgamento ocorresse. O processo foi arquivado, e Lule considera-se inocentado nesse e noutros casos.
O caso do deputado federal eleito e ex-procurador da Lava-Jato , que perdeu o mandato por unanimidade em julgamento que durou um minuto e seis segundos, enquadra-se na segunda hipótese.
O relator do caso no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Sinistro B. Gonçalves, usou uma interpretação premonitória para cassar a candidatura do ex-procurador, pois é proibido que um integrante do Ministério Público peça demissão do cargo para evitar uma condenação.
O curioso nesse caso é que não existia nenhum processo administrativo disciplinar contra ele no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) quando se exonerou.
Mas poderia vir a existir, alegou o sinistro Gonçalves, pois havia na ocasião 15 queixas preliminares contra ele, que poderiam se transformar em Processos Administrativos Disciplinares (PADs) que, por sua vez, poderiam acarretar punição.
O relator afirmou que essas ações preliminares “potencialmente ensejariam processos administrativos disciplinares com eventual penalidade de demissão caso o recorrido não tivesse requerido de forma antecipada sua exoneração”.
E o que caracteriza a má-fé, de acordo com o ministro Gonçalves? Ele poderia ficar no cargo até seis meses antes da eleição e, mesmo assim, resolveu sair antes.
Então, ficamos assim: se uma das ações preliminares tivesse se transformado em processo administrativo e se o CNMP tivesse punido Dallagnol, ele teria sido enquadrado na Lei da Ficha Limpa e não poderia ter concorrido à eleição. Sendo assim, vamos puni-lo nesse metaverso hipotético, para que ninguém sequer pense em burlar a legislação.
Quer dizer que o TSE já sabia que Dallagnol seria punido pelo CNMP? E como podia ter tanta certeza assim o relator? Então, ficamos assim: o ex-procurador da Lava-Jato Deltan Dallagnol foi eleito deputado federal com mais de 344 mil votos e está impossibilitado de exercer seu mandato por uma adivinhação do ministro Benedito Gonçalves sobre o que poderia ter ocorrido, seguida por todos os ministros do TSE.
Nas redes sociais, políticos da estirpe do ex-deputado Eduardo Cunha e do senador Renan Calheiros vibram com a condenação e já clamam pela punição do ex-juiz Sergio Moro, contra quem também há processo no TSE.
Enquanto isso, no Congresso, segue impunemente a votação para uma anistia a todos os atos ilegais cometidos pelos partidos políticos, desde o uso indevido de dinheiro público até o não cumprimento das regras sobre cotas para mulheres e negros.
Quanto a Operação Lava-Jato, os fatos não foram alterados. A corrupção existiu, o dinheiro foi roubado, parte dele foi devolvida. Hoje, todos dizem que foram obrigados a delatar. Até Emílio Odebrecht escreveu um livro onde afirma que não houve roubo da Odebrecht. Palocci também quer desdizer o que disse, alegando ter sido pressionado. Como disse o Capitão Nascimento, personagem de “Tropa de elite 2”, “o sistema é f*#@”.
*Merval Pereira (O Globo)
Sábado, 20 de maio 2023 às 12:36