O
Supremo Tribunal Federal (STF) é hoje a principal fonte de dor de cabeça para
Jair Bolsonaro. Não para de impor derrotas ao governo, vide julgamentos sobre o
tema “coronavírus”. E, pior: ali há dois inquéritos capazes de derrubar o
presidente. Um com Celso de Mello, sobre interferência política na Polícia
Federal (PF), outro com Alexandre de Moraes, sobre milícias digitais.
O
decano e o calouro da corte têm sido durões em suas decisões. Por quê? Por que
a corte tornou-se a maior barreira de contenção ao ex-capitão, a ponto de ele
ter vociferado “acabou, porra!” e “ordens absurdas não se cumprem, temos de
botar um limite”, depois de uma operação policial em 27 de maio ordenada por
Moraes?
Um
misto de água pelo pescoço e peso na consciência, segundo o sociólogo Adalberto
Cardoso, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).
“O
Supremo é um dos culpados pela eleição do Bolsonaro”, afirma Cardoso. “As ações
de Bolsonaro fizeram o Supremo enxergar que vários de seus ministros tinham
sido levados a uma sinuca de bico e que o governo e sua entourage [entorno] são
ameaças à Constituição. ”
O
acadêmico acaba de lançar um livro sobre o bolsonarismo, intitulado “À beira do
abismo”, em que dedica um capítulo a examinar o papel do Supremo na ascensão do
ex-capitão ao poder. Uma análise que não é motivo de orgulho para o tribunal,
descrito como “principal ator político” do País de 2012 em diante e como
“tutelador” da democracia brasileira.
Para
Cardoso, no julgamento do dito “mensalão”, em 2012, o Supremo abençoou a
condenação sem provas, como em um dos processos contra o petista José Dirceu,
sentenciado com base na teoria do “domínio do fato” – por esta teoria, Dirceu
não tinha como não saber de trambicagens à sua volta.
“Essa
forma de ‘julgar’ seria empregada pelo Congresso no caso do golpe contra Dilma
Rousseff” em 2016, “condenada de antemão na dinâmica política mais geral pelo
‘conjunto da obra’”, diz o livro. “E seria empregada contra Lula, também
condenado de antemão pela força tarefa da Lava Jato (vide o famoso power point
de Deltan Dallagonol), que passou anos construindo uma narrativa que centenas
de juristas desmontaram como farsesca lawfare.”
Segundo
Cardoso, a melhor explicação para as atitudes nem tão pretéritas do STF está em
uma declaração de 2007 do juiz Marco Aurélio Mello, o vice decano: “A
Constituição é o que o Supremo diz que ela é”.
Algumas
decisões posteriores provaram que Marco Aurélio estava certo. Como anota
Cardoso no livro, o ex-senador petista Delcídio Amaral foi preso por ordem do
STF em novembro de 2015, quando era líder do governo Dilma, apesar de a
Constituição, no artigo 53o, dizer que congressistas “não poderão ser presos,
salvo em flagrante de crime inafiançável”. Não houve flagrante de Amaral.
Outro
exemplo de que a Constituição foi deixada de lado em nome do que o STF diz que
ela é: em 2016, o Supremo liberou a prisão de quem tivesse sido condenado em um
tribunal de segunda instância, apesar de a Carta de 1988 dizer, no artigo 5o,
que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença
penal condenatória”.
A
corte revogou a autorização em 2019, uma das decisões apontadas por Cardoso
como uma espécie de tentativa de redimir-se. “O Supremo foi peça central no
enfraquecimento da ordem constitucional de 1988, tomou decisões ao sabor da
opinião pública”, disse à CartaCapital. “E com isso foi um agente na combinação
de elementos políticos que levaram à eleição de um outsider como Bolsonaro.”
Para
o sociólogo, a posição atual do Supremo decorre não só de uma volta ao
legalismo, mas também da percepção, na opinião dele existente entre os juízes
da corte, de que “a família do presidente está implicada” nos inquéritos
conduzidos por Celso de Mello e Alexandre de Moraes. “E que o Bolsonaro se move
pela família e pelas milícias”, emenda o professor.
“Há
um elemento central hoje, a aposentadoria do Celso de Mello. Ele imprime uma
velocidade inaudita e sem precedentes [no inquérito]. O normal no Supremo é
procrastinar, sobretudo em casos sobre próceres da República, para que os
crimes prescrevam”, afirma Cardoso.
O
decano pendura a toga em novembro. O caso nas mãos dele surgiu da alegação de
Sergio Moro, ex-ministro da Justiça, de que Bolsonaro trocou na marra o
diretor-geral da Polícia Federal para proteger os três filhos. Flavio é
investigado por “rachadinhas”. Carlos e Eduardo podem ser alvos a qualquer
momento do inquérito das milícias digitais, ou das fake news, nas mãos de
Moraes.
*CartaCapital
Domingo,
31 de maio, 2020 ás 11:00