No início da pandemia, sintomas gripais eram suficientes para causar a suspeita de covid-19 e receber a recomendação médica de isolamento preventivo até o resultado de um teste. Agora, embora a orientação continue a mesma, com a chegada das vacinas, que permitem casos mais brandos da doença, e o surto de influenza acontecendo simultaneamente em vários Estados brasileiros, sinais como dor de cabeça e dor de garganta tendem a ser menosprezados.
Há ainda, embora em menor parcela, quem acredite que um teste positivo não é motivo para deixar de ir à praia ou seguir a rotina de trabalho, por exemplo. A atitude não é errada somente do ponto de vista moral ou epidemiológico, mas também por termos jurídicos — de acordo com a lei brasileira, ela pode gerar sanções.
Em março de 2020, uma portaria assinada pelos então ministros Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, e Sergio Moro, da Justiça, citava os artigos 268 e 330 do código penal para quem não respeitasse as regras de isolamento. O primeiro estipula infração para quem não seguir medidas sanitárias preventivas, ou seja, descumprir alguma determinação criada para impedir propagação de epidemia ou uma doença. Já o segundo, mais genérico, prevê prisão para quem não acatar a ordem de um funcionário público.
De acordo com o advogado sanitarista Silvio Guidi, a portaria não pode criar novas regras ou mudar o poder das sanções. "Ela tem somente um caráter pedagógico, de lembrar a população que existem leis e consequências para aqueles que as infringem", explica Guidi, que é sócio do escritório Vernalha Pereira e atua no Conselho de Saúde do Estado de São Paulo.
O texto prevê que profissionais da área da saúde poderão "solicitar o auxílio de força policial nos casos de recusa ou desobediência" de pacientes que precisem ficar em isolamento e que "a autoridade policial poderá encaminhar o agente à sua residência ou estabelecimento hospitalar para o cumprimento das medidas".
Embora a portaria cite um artigo que prevê a prisão de infratores, o advogado Davi Tangerino, professor adjunto de Direito Penal da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), explica que o descumprimento da regra é considerado um crime de "menor potencial ofensivo", cuja pena máxima é de dois anos - mas que, ainda assim, o cidadão dificilmente será preso.
"Para réus primários (quem nunca teve acusação), crimes de menor potencial ofensivo não geram prisão. Mesmo para quem já tem antecedentes criminais, isso possivelmente resultaria em um acordo de cumprimento medidas simples como doação de cestas e comparecimento periódico em juízo."
O que poderia acontecer com quem descumpre a quarentena mesmo sabendo que está infectado é a aplicação de uma multa. "O comportamento infringiria a lei das infrações sanitárias, então a sanção poderia ser o pagamento de multa. Não pode haver isolamento forçado, pois isso seria equivalente a uma pena restrição de liberdade, um direito fundamental", explica Daniel Dourado, médico, advogado sanitarista e pesquisador do Cepedisa/USP (Centro de Pesquisa em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo).
O mais difícil, no entanto, é a fiscalização. "Materializar a ocorrência dessa infração é um grande desafio. Como conseguir provar que a pessoa sabia que estava com a doença e mesmo assim deixou de cumprir o isolamento? Um governo democrático não poderia ter acesso a todas as informações - desde o teste a todos os locais frequentados pelo cidadão. Isso dificulta o flagrante e, ainda que acontecesse, poderia se tornar um processo judicial longo e inviável para exercer em toda a população", opina Silvio Guidi.
Em junho de 2020, o governo municipal de São Paulo anunciou que a Vigilância Sanitária multaria pessoas (no valor de R$ 500) ou estabelecimentos comerciais (em R$ 5 mil) que desrespeitarem o uso de máscaras em espaços comuns.
O valor das multas, de acordo com a Prefeitura, seria revertido para o programa Alimento Solidário, para aquisição de cestas e distribuição às pessoas em estado de pobreza. Regras de punição semelhantes foram criadas no Rio de Janeiro (RJ), Macapá (AP), Curitiba (PR), Fortaleza (CE), e muitas outras cidades.
Responsáveis por grandes aglomerações que não respeitam medidas sanitárias também podem ser alvo de processo.
Na última terça-feira (11/1), o Ministério Público de São Paulo ajuizou uma ação contra 13 participantes acusados - entre eles, o ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles - de cometer irregularidades sanitárias durante a motociata em apoio ao presidente Jair Bolsonaro (PL), realizada em junho na cidade de São Paulo. A multa prevista pela ação é de R$ 800 mil.
Na época, logo após o evento, o presidente, o deputado estadual Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes, foram multados pelo governo paulista em R$ 552,71 por não utilizarem máscara de proteção. Para Jair Bolsonaro, a infração não foi a primeira, nem a última. Até setembro de 2021, o presidente recebeu sete multas na capital paulista.
Na opinião de Daniel Dourado, não. "Embora a ausência completa de possibilidade de punição também não seja benéfica, não há dados empíricos que mostrem que o caráter sancionatório funcione para mudar comportamentos. Muitas pessoas não deixam de fazer algo por medo da pena, mas por acharem que não serão pegas."
O melhor resultado, de acordo com os especialistas entrevistados pela BBC, seria conquistado meio da conscientização. "Um único discurso de todos os poderes voltados para vacinação contribuiria mais que sanções. Mas quando discursos de autoridades estão na contramão da ciência, a população fica confusa", opina Guidi.
No entanto, quando se trata de medidas que restringem o acesso de não vacinados a locais públicos e impedem que essas pessoas consigam tomar determinadas ações, isso pode, por consequência, incentivar a aceitação à imunização, conforme alguns exemplos.
No Canadá, a província de Quebec cobrará um imposto dos 12,8% de moradores que não se vacinaram. Na semana passada, a mesma província determinou a necessidade de comprovante de vacinação para fazer compras em lojas de maconha e bebidas do governo, o que aumentou a busca por imunizantes em 300%, de acordo com um tuíte do Ministro da Saúde, Christian Dubé.
No Brasil, a vacinação contra covid-19 ainda não é considerada obrigatória, mas a Lei 13.979, de fevereiro de 2020 - mantida pelo Supremo em dezembro - dá a possibilidade a estados e municípios legislarem tornando-a compulsória.
"Por enquanto, contamos apenas com sanções administrativas, como exigência do cartão vacinal para trabalhar e frequentar bares e restaurantes", exemplifica Dourado.
*BBC Brasil
Quinta-feira, 13 de janeiro 2022 às 12:16
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