Nos tornamos uma sociedade de
vigilância. Não tanto da vigilância vinda do Estado, mas da multidão. No imenso
panóptico coletivo em que nos transformamos, passamos a ocupar uma dupla
função: a do vigia, que fica na torre, no alto do panóptico, e a dos prisioneiros,
espalhados pelas celas. A motivação para tudo isso é clara: ganhamos
visibilidade, em função da tecnologia, e nos tornamos animais retóricos.
Bisbilhotamos a vida dos
outros para sinalizar nossa própria virtude. Alain de Botton escreveu um livro
saboroso sobre o tema, “Desejo de Status”. Mais do que recompensas materiais,
diz ele, o que realmente desejamos é o reconhecimento dos outros.
“Não há punição mais demoníaca do que estar em
uma sociedade e passar totalmente desapercebido”, diz William James, citado por
Botton. Quando li isso, me lembrei de “Para Roma, com Amor”, do Woody Allen,
com a história de Leopoldo, um desconhecido que subitamente se torna famoso.
Ele é perseguido por
paparazzi, quase não pode sair às ruas, e lá pelas tantas se diz cheio daquele
inferno. De uma hora para outra, volta à obscuridade, e aí a coisa se inverte:
sua vida se torna insuportável. Em pouco tempo, ele corre pelas ruas,
suplicando que as pessoas o reconheçam. Nosso problematizador é um Leopoldo.
Ele corre entre os carros, suplicando atenção. Implica com a Jennifer Lopez,
com o goleiro da Argentina, com os jogadores da seleção, com tudo que ele acha
que pode chamar a atenção. E com isso fazer com que as pessoas digam que sua
opinião é relevante, que ele não vai só ficar carregando aquela pedra, montanha
acima, como o Sísifo, sem que se deem conta dele.
Botton sugere que tudo diz
respeito à “insegurança congênita que sentimos em relação a nós mesmos”. E que
nos faz “desejar o desejo dos outros”. Bacana isso. Se implicar alguma ação
heroica, ou alguma doação à filantropia, para deixar seu nome gravado em alguma
plaquinha de agradecimento, me parece ótimo.
O problema reside no
esnobismo fast food, feito de sinalizações de virtude, na enorme diversidade de
mídias que temos à disposição. Conheço uma penca de gente que vive disso.
Barack Obama foi cáustico com estas pessoas.
“Essa ideia de pureza… de que
você está sempre woke”, diz ele, “sugiro que você descarte.” E completa: “O
mundo é feito de ambiguidades. Pessoas que fazem coisas boas têm falhas”. Vendo
o Obama falar, não parece complicado entender uma coisa dessas. Mas é.
O humorista Mauricio Meirelles
fez um experimento, dias atrás, no Twitter. Ele postou dois tuítes. Um com a
foto de um carro ocupando duas vagas em um estacionamento e o outro sugerindo
doações para a Unicef. O tuíte do carro mobilizou a rede, com milhares de
xingamentos, num congestionamento poucas vezes visto de sinalizadores de
virtude. O pedido de contribuições perdeu de lavada.
As pessoas preferem mostrar
sua “superioridade intelectual”, diz ele, “a fazer algo positivo”. Na prática,
fazemos uso do poder da tecnologia, nos esquecendo de um pequeno detalhe: junto
com o poder, vem a responsabilidade. É aí que reside o problema. Devagar, vamos
escorregando na direção de uma sociedade de vigilância. Nas empresas, na
educação, e mesmo nos tribunais.
Onde isso vai parar, não sei.
É a ironia de nossa época: no momento em que a tecnologia permitiu que nos
expressássemos, com liberdade, escolhemos nos dedicar à trivialidade e ao
controle da vida dos outros. A pergunta que fica é como cada um de nós pode
agir em relação a isso. Penso que foi essa a preocupação de Obama naquela
palestra, mas cada um pode responder à sua maneira, neste ano que apenas se inicia.
*Veja
Segunda-feira, 09 de janeiro
2023 às 21:09