A
vitória da Dilma começou há dez anos, quando o PSDB preferiu não se defender
dos ataques de Lula e do PT. Nunca entenderei como um partido que, no governo,
acabou com a inflação, criou leis modernizantes, reformas fundamentais, se
fechou, se “arregrou, se encagaçou” diante das acusações mais infundadas, por
preguiça e medo. Aí o PT deitou e rolou. E conseguiu transformar os socialdemocratas
em “reacionários de direita”, pecha que os jovens imbecis e intelectuais de
hoje engoliram.
Ou
seja, o melhor projeto para o país foi desmoralizado como “neoliberal”, de
“direita”.
Os
intelectuais que legitimaram o Lula /Dilma nos últimos 12 anos repetem os
diagnósticos óbvios sobre o mundo capitalista, mas, na hora de traçar um
programa para o Brasil, temos o “silêncio dos inocentes”. Rejeitam o
capitalismo, mas não têm nada para botar no lugar. Assim, em vez de construir,
avacalham. Estamos no início de um grave desastre. E esses “revolucionários” de
galinheiro não se preocupam com o detalhe de dizer “como” fazer suas mudanças
no país.
Dizem
que querem mudar a realidade brasileira, mas odeiam vê-la, como se a realidade
fosse “reacionária”. Isso me faz lembrar (para um breve refresco cômico) a
frase de Woody Allen: “A ‘realidade’ é enigmática, mas ainda é o único lugar
onde se pode comer um bom bife”.
No
Brasil, a palavra “esquerda” continua a ser o ópio dos “pequenos burgueses”
(para usar um termo tão caro a eles). Pressupõe uma especialidade que ninguém
mais sabe qual é, mas que “fortalece”, enobrece qualquer discurso. O termo é
esquivo, encobre erros pavorosos e até justifica massacres.
Nas
rasas autocríticas que fazem, falam em “aventureirismo”, “vacilações”,
“sectarismo” e outros vícios ideológicos; mas o que os define são conceitos
como narcisismo, paranoia, onipotência, voracidade, ignorância. É impossível
repensar uma “esquerda” mantendo velhas ideias como: “democracia burguesa”, fins
justificam os meios, superioridade moral sobre os “outros”, luta de classes
clássica. Uma “nova esquerda” teria de acabar com a fé e a esperança. Isso dói,
eu sei; mas contar com essas duas antigas virtudes não cabe mais neste mundo de
bosta de hoje.
As
grandes soluções impossíveis amarram as possíveis. Temos de encerrar as
macrossoluções e aceitar as “micro”. O discurso épico tem de ser substituído
por um discurso realista e até pessimista. O pensamento da “esquerda
metafísica” tem de dar lugar a uma reflexão mais testada, mais sociológica,
mais óbvia, mais cotidiana.
Não
quero bancar o profeta, mas qualquer um que tenha conhecido a turminha que está
no poder hoje, nos idos de 1963, poderia adivinhar o que estava para vir. E
olhem que nos meus 20 anos era impossível não ser “de esquerda”. Havia o
espírito do tempo da Guerra Fria, uma onda de esperança misturada com falta de
experiência. Nós queríamos ser como os homens maravilhosos que conquistaram
Cuba, os longos cabelos louros de Camilo Cienfuegos, o charuto do Guevara, a
“pachanga” dançada na chuva linda do dia em que entraram em Havana, exaustos,
barbados, com fuzis na mão e embriagados de vitória.
A
genialidade de Marx me fascinava. Um companheiro me disse uma vez: “Marx
estudou economia, história e filosofia e, um dia, sentou-se na mesa e escreveu
um programa para reorganizar a humanidade”. Era a invencível beleza da Razão, o
poder das ideias “justas”, que me estimulava a largar qualquer profissão
“burguesa”. Meu avô dizia: “Cuidado, Arnaldinho, os comunistas se acham
‘médiuns’, parece tenda espírita...”
Eu
não liguei e fui para os “aparelhos”, as reuniões de “base” e, para meu
desalento, me decepcionei.
Em
vez do charme infinito dos heróis cubanos, comecei a ver o erro, plantado em
duas raízes: ou uma patética tentativa de organização da sociedade que nunca se
explicitava, ou, de outro lado, um delírio radical utópico. Eu e outros
“artistas” morávamos numa espécie de “terceira via” revolucionária e começamos
a achar caretas ou malucos os nossos camaradas. Nas reuniões e assembleias,
surgia sempre a presença rombuda da burrice. A burrice tem sido muito
subestimada nas análises históricas. No entanto, ela é presença obrigatória, o
convidado de honra: a burrice sólida, assentada em certezas. As discussões
intermináveis acabavam diante do enigma: o que fazer? E ninguém sabia. Eu nunca
vi gente tão incompetente como os “comunistas”. São militantes cheios de fé
como evangélicos, mas não sabem fazer porra nenhuma. E até hoje são fiéis a
essa ignorância. Trata-se de um cinismo indestrutível em nome de um emaranhado
de dogmas que eles chamam de “causas populares”. E Lula montou nessa gente, e
essa gente, no Lula.
A
grande mentira está adoecendo os homens de bem que romanticamente achavam que o
Brasil poderia se modernizar. Os safados atuais acreditam que o país não tem
condições de suportar a “delicadeza” da democracia. E como o socialismo é
impossível – eles remotamente suspeitam –, partiram para o mais descarado
populismo, que funciona num país de pobres analfabetos e famintos. E eles são
mantidos “in vitro” para futuras eleições. E populismo dura muito. Destruirão a
Venezuela e Argentina com a aprovação da população de enganados. É muito longa
a “jornada dos imbecis até o entendimento”.
Na
situação atual, é um insulto vermos o regresso do Brasil a um passado
pré-impeachment do Collor. Reaparecem todos os vícios que pareciam suprimidos
pela consciência da sociedade. E para além das racionalizações, do “wishful
thinking” dos derrotados (tucanos “fortalecidos” etc.), a oposição vai ter de
lutar muito para impedir o desastre institucional que pode ser irreversível.
Nas
últimas eleições não houve uma disputa tipo Fla x Flu. É muito mais grave.
Estamos descobrindo que temos poucos instrumentos para modernizar o país – tudo
parece ter uma vocação para a marcha à ré em direção ao atraso. O óbvio está
berrando a nossa frente, e os donos do poder fecham os olhos.
Esta
crise não é só política; é psiquiátrica.
Por:
Arnaldo Jabor
Terça-feira,
11 de outubro, 2014
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