A
Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática (CCT) do
Senado Federal realizou audiência pública para discutir o Projeto de Lei (PL)
nº 3.832 de 2019, do senador Vanderlan Cardoso (PP-GO). A proposta altera a Lei
12.485 de 2011, que regula a TV paga no país, retirando os dois fatores que
limitam a concentração de propriedade no setor. O primeiro é o que restringe a
participação de uma distribuidora (como a NET, por exemplo) em uma programadora
(como a Globosat) e vice-versa. O segundo fator é o que proíbe distribuidoras
de contratar talentos brasileiros e adquirir direitos de transmissão.
O
debate, contudo, não foi apenas sobre TV paga. O parecer do relator da matéria,
senador Arolde de Oliveira (PSD-RJ), incluiu uma previsão expressa de que “os
conteúdos distribuídos pela Internet” não são considerados Serviços de Acesso
Condicionado (SeAC, o nome técnico para a TV por assinatura). Se aprovada tal
mudança, as regras de TVs por assinatura não se aplicarão aos serviços como
Netflix, Globoplay.
O
contexto da polêmica
Mais
do que apenas um debate sobre uma matéria legislativa, a polêmica foi motivada
por duas grandes movimentações de mercado. A primeira foi a fusão da operadora
de telecomunicações estadunidense AT&T, controlador da Sky no Brasil, com a
empresa de mídia TimeWarner (detentora dos canais Warner). Como a Sky é uma
distribuidora e o novo conglomerado é controlador de diversos canais (como os
da HBO, TNT, CNN e Cartoon, entre outros), as autoridades regulatórias devem
avaliar se isso fere ou não as limitações da Lei 12.485.
O
Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) fez uma análise da operação,
que denominou como “estritamente concorrencial”, apontando alguns
condicionantes. Caberá à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel)
determinar se a operação se adequa à legislação brasileira. O governo
brasileiro se posicionou favoravelmente à fusão, após um pedido do presidente
norte-americano Donald Trump, e a Anatel colocou o tema em votação, o que ainda
não ocorreu.
Outro
episódio que alimentou a discussão, ocorrida ontem (27), foi a denúncia da
Claro contra a Fox por essa ter lançado um serviço de streaming regular
(semelhante a um canal de TV pago, mas diretamente na Internet). A Claro exigia
que, para o acesso a esses conteúdos, o indivíduo tivesse que contratar um
pacote juntamente a uma operadora de TV paga. A Anatel proferiu uma cautelar
neste ano impedindo a atuação da Fox, mas o Tribunal Regional Federal da 1ª
Região cassou a cautelar, entendendo que a distribuição de audiovisual na web,
mesmo que linear (em programação contínua, e não apenas sob demanda, como a
Netflix) não estaria regido pela Lei 12.485.
O
que diz a legislação atual?
A
Lei 12.485, conhecida como Lei da TV paga, dispõe sobre “a comunicação audiovisual
de acesso condicionado”. O Serviço de Acesso Condicionado é definido como
“serviço de telecomunicações de interesse coletivo prestado no regime privado,
cuja recepção é condicionada à contratação remunerada por assinantes e
destinado à distribuição de conteúdos audiovisuais na forma de pacotes, de
canais nas modalidades avulsa de programação e avulsa de conteúdo programado e
de canais de distribuição obrigatória, por meio de tecnologias, processos,
meios eletrônicos e protocolos de comunicação quaisquer”.
O
Artigo 5° da atual legislação afirma que distribuidoras não poderão ter
participação superior a 30% em emissoras de TV, programadoras ou produtoras
independentes. Já no sentido inverso, estas últimas não podem controlar mais do
que 50% das operadoras de telecomunicações. Assim, a Lei da TV paga estabelece
uma regra de limite para que uma mesma empresa não controle todos os elos da
cadeia: produção, programação, empacotamento e distribuição.
Já
o Artigo 6° reforça a divisão, impondo restrições às distribuidoras para
contratar talentos nacionais e adquirir direitos de transmissão – como o
direito de transmitir o campeonato brasileiro de futebol, por exemplo.
O
que propõe o PL n°3.832?
O
PL do senador Vanderlan Cardoso é sintético e revoga os Artigos 5° e 6º. Assim,
tais limites à concentração de propriedade deixariam de valer, retirando as
limitações que poderiam comprometer a fusão AT&T e TimeWarner pela Anatel.
O parecer do senador Arolde de Oliveira (PSD-RJ) concorda com essas mudanças,
mas retira do escopo da Lei da TV paga os “conteúdos distribuídos pela
Internet”, dando segurança jurídica para negócios como o serviço de streaming
da Fox no Brasil, assim como como Disney+, HBO Go e Globoplay.
As
posições na audiência
Distribuidoras
– Como distribuidora, a Claro defendeu revogar os limites para concentração de
propriedade, para que não haja restrições em controlar programadoras,
produtoras e emissoras de TV. Contudo, a Claro se posicionou contra parte do
parecer do senador Arolde que livra os serviços de streaming das obrigações da
Lei. “Neste modelo proposto obrigações não existem. Grande parte do setor de
audiovisual é financiado pelo SeAC. [A mudança] afeta o ICMS dos estados. Quem
vai carregar TV Câmara, TV Justiça, TV Senado e TVs comunitárias [cuja
transmissão obrigatória é prevista na Lei 12.485]?”, questionou o
vice-presidente de relações institucionais da Claro, Fábio Andrade.
Emissoras
de rádio e TV – A Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão
(Abert, que inclui a Globo) defendeu, em concordância com o parecer do relator,
que serviços de streaming não devem ser confundidos com TV paga. “Não se pode
criar barreiras artificiais a ponto que se exija dele [consumidor] pacote para
ter acesso. Radiodifusores entendem que devem estar livres para adotar modelos
de negócio convergentes com novas tecnologias”, argumentou o diretor-jurídico
da Abert, Rodolfo Salema. Já sobre o Artigo 5°, ele ponderou que é preciso
avaliar melhor os impactos, pois novos conglomerados entrariam no mercado e
empresas estrangeiras concorreriam com companhias brasileiras, que deveriam ser
protegidas. Já a Associação Brasileira de Rádio e Televisão (Abratel, que
inclui Record e Band) concordou com a revogação dos Artigos 5° e 6°, mas
ponderou que estes devem vir com mecanismos para evitar efeitos danosos da
verticalização do setor (as medidas não foram, contudo, apresentadas).
Indústria
audiovisual – O presidente da Brasil Audiovisual (Bravi), Mauro Garcia, expôs a
necessidade de considerar os impactos das medidas no setor, que é formado por
13 mil empresas, e defendeu a exigência de cota nacional, que teria contribuído
para ampliar a participação brasileira nas obras exibidas no país. Já o
presidente do Sindicato da Indústria Audiovisual de São Paulo, Paulo Roberto
Schmidt, considerou importante debater os Artigos 5º e 6°, mas reiterou a
defesa de instrumentos de proteção ao conteúdo nacional.
Sociedade
civil – O Coletivo Intervozes criticou a proposta de revogar os Artigos 5° e
6°, indicando que a verticalização trará prejuízos aos indivíduos e ao
audiovisual brasileiro, aumentando concentração e diminuindo diversidade.
Contudo, a coordenadora da entidade, Marina Pita, apresentou uma interpretação
segundo a qual a Lei 12.485 não regula apenas a TV paga, mas a “comunicação
audiovisual de acesso condicionado”. Assim, as obrigações da Lei da TV paga,
como as cotas de produção nacional e independente, deveriam ser cobradas de
serviços de vídeo sob demanda (como Netflix, AmazonPrimeVideo e outros). “Não
temos questão de acabar com a vedação dos Artigos 5° e 6°, mas enfrentar novos
problemas da verticalização num cenário de convergência digital. Se a gente
alterar a Lei, podemos aumentar o problema”, analisou.
Pesquisadores
– Para o pesquisador em comunicação e cultura João Brant, a mudança é uma
demanda apenas de um conglomerado estadunidense (AT&T / TimeWarner) e o
Senado não deveria colocar esse interesse acima do mercado audiovisual e dos
cidadãos brasileiros. “Integração vertical tem potenciais efeitos negativos ao
consumidor. Se for assim, que se tragam condicionantes como separação
funcional, oferta em condições não discriminatórias e transmissão em condições
não discriminatórias”, recomendou. O professor de cinema da UFSC Alfredo Manevy
lembrou que regulações impedindo a verticalização da cadeia do audiovisual
foram implantadas nos Estados Unidos, país fortemente liberal, não se
configurando como interferência do Estado. Ele reforçou que a mudança favorece
um grande grupo empresarial internacional, mas “desconsidera todo o impacto na
indústria audiovisual brasileira”. (ABr)
Quarta-feira,
28 de agosto ás 18:00