A equipe econômica prepara a volta do famigerado
imposto do cheque. É a ideia mais nefasta da Reforma Tributária, que com seu
efeito cascata penaliza o trabalhador, dificulta o ambiente de negócios e
asfixia a economia – além de estimular a informalidade. Cabe à Câmara barrar
tal insanidade
O
anacrônico sistema tributário brasileiro foi remendado ao longo das últimas
décadas até se tornar um pesadelo improdutivo e kafkiano. Exige uma
reformulação urgente para melhorar a competitividade do País e deixar de
penalizar o contribuinte que sustenta uma máquina pública hipertrofiada e
ineficiente. Essa avaliação é unânime. Mas, em se tratando de Brasil, o que é
ruim sempre pode piorar. O risco é iminente. Em fase final de elaboração, o
projeto do governo Jair Bolsonaro destinado a reformular o sistema tributário
ressuscita uma das piores experiências já realizadas no País: o imposto do
cheque – ou seja, a taxação sobre operações financeiras. Denominado
Contribuição sobre Pagamentos (CP), o novo imposto pode asfixiar a economia com
seu efeito cascata e insuflar a informalidade. Um retrocesso sem precedentes.
Imagine a volta do dinheiro no colchão ou mesmo do escambo? Sim, porque é
lícito imaginar que as pessoas, temendo a perda da renda mensal e do
consequente poder de compra, irão fugir em desabalada carreira da nova mordida
do Leão. A saída para evitar a sobretaxação será uma espécie de
desbancalização, quer dizer, a circulação de recursos fora do sistema bancário
e as transações em dinheiro vivo, o que além de tudo pode estimular, por óbvio,
a corrupção.
A
justificativa canhestra é de que o novo tributo vai ser usado para compensar a
desoneração das folhas de pagamentos – empresários deixariam de pagar a
contribuição previdenciária patronal. Trata-se de um sofisma, pois não há
garantias de ganhos de um lado, mas há certezas de incalculáveis perdas do
outro, nas faixas onde se concentram a maioria da população. Na verdade, o
imposto trará a reboque todos os cacoetes equivocados de taxação. Senão
vejamos. Ele impõe taxas em torno de 2%, e seria cobrado nas duas pontas: cada
vez que um depósito é feito em uma conta corrente, e também quando há um
resgate. Assim, a cada movimentação, seria subtraído 4% do titular (a antiga
CPMF tinha uma alíquota de 0,38%, cobrada apenas na retirada). Pior é o efeito
cumulativo da taxação. Quem recebe o seu salário ou deposita um cheque, por
exemplo, será descontado. Ao pagar uma conta, será taxado novamente. Ao
transferir o dinheiro para outra conta, cobrado mais uma vez, e assim por
diante. No caso das indústrias, que dependem de dezenas ou centenas de
fornecedores, esse efeito cascata encarece o produto e derruba a eficiência.
Mas isso não é tudo. “O efeito mais regressivo é no pagamento dos lucros e
salários, nos rendimentos em geral, que deveriam ser tributados no imposto de renda”,
lamenta o advogado e economista Eduardo Fleury. “Vai afetar mais a classe média
do que das classes mais altas. O principal dano está no que faz no processo
produtivo. Você acaba criando mais impostos nas cadeias que têm mais elos. ”
O
tributo, já rejeitado pelo País, é a menina dos olhos do economista Marcos
Cintra, secretário da Receita Federal. Cintra é obcecado há décadas pela
criação de um imposto único, que viria paralelo à CP a partir da unificação de
impostos federais (como PIS, Cofins e IOF arrecadatório), mas ele nunca havia
conseguido emplacar a proposta no Brasil. Por mais que Cintra queira recorrer a
eufemismos, como se tentasse dourar uma pílula de travo amargo, a CP guarda
mais semelhança com a velha CPMF do que com o fetiche do único imposto. Não por
acaso, ela é rechaçada por economistas de todas as tendências, de liberais a
nacionais desenvolvimentistas. É uma espécie de unanimidade negativa. Pode-se
dizer que, no auge do acirrado Fla-Flu de ideias, que perpassa pela política,
mas também pela economia, se há algo que une todas as correntes de
especialistas é a natureza nefasta do que quer se propor como novo imposto.
Além
do crescimento da informalidade, a tributação favorece a economia subterrânea,
que tende a crescer via criptomoedas, meios internacionais de difícil
rastreamento e contas no exterior. Contra isso, um dos argumentos em sua defesa
é o aumento da base de tributação – Cintra fala em expansão de até 30% -, já
que todos são atingidos. Mas especialistas também apontam que, com o tempo, a
arrecadação diminui. Cálculos preliminares da Receita indicam que poderia gerar
R$ 1 trilhão em dez anos. “A capacidade de arrecadação é bastante duvidosa”,
argumenta Eduardo Fleury.
Por
ser tão deletério, praticamente nenhum país do mundo desenvolvido usa esse tipo
de imposto. A Austrália tentou, nos anos 80, e o abandonou. Já na América
Latina os governantes gostam de utilizá-lo – com maus resultados. Entre outros
problemas, o tributo diminui os depósitos nos bancos e, com isso, prejudica o crédito.
É a conclusão de Felipe Restrepo, da Western University, do Canadá, que
pesquisou sete países da região que adotaram um imposto sobre movimentações
financeiras entre 1986 e 2005. O estudo mostrou outro efeito previsível e
danoso: ele reduz o crescimento da economia, não bastasse prejudicar o sistema
financeiro e as indústrias que dependem de financiamento.
Se
a população rejeita esse tributo, os governantes por outro lado o veneram.
“Para os formuladores de políticas públicas ele é atraente, pois é fácil e
barato de coletar”, diz Restrepo. E pode ser usado associado a causas sociais
como a Previdência (como no atual governo) e a Saúde, caso da antiga
Contribuição Provisória sobre a Movimentação Financeira (CPMF), criada no
governo Fernando Henrique Cardoso, nos anos 1990. Na experiência tucana, a
arrecadação, que deveria ser revertida para o sistema público de saúde, acabou
na prática tapando o rombo nas contas públicas. Depois de criado, Inês é morta:
o difícil é se desvencilhar dele. A CPMF até foi extinta em 2007, durante o
governo Lula, mas contra a vontade do ex-presidente petista – e com o apoio
decisivo de Rodrigo Maia, que era oposição na época. A presidente Dilma
Rousseff tentou reintroduzi-la. Enviou, em 2015, com o objetivo de bancar o pagamento
de aposentadorias, mas não teve força política para levá-la adiante.
Teto
para deduções
O
projeto da Reforma Tributária não se limita, por óbvio, à criação da CP. Mas
mais uma vez quem pode ser penalizada é a classe média. É que outro eixo da
proposta prevê a diminuição das alíquotas do imposto de renda de empresas (de
34% para uma faixa entre 20% e 25%) e pessoas físicas, tendo como contrapartida
um teto para as deduções para saúde (sem limites atualmente) – a proposta
inicial era eliminá-las. “Hoje existe um benefício excessivo a famílias de alta
renda, que usam medicina particular e não usam o SUS. O grosso da população usa
o SUS e não tem nenhuma dedução”, argumentou Cintra. Alexandre Motonaga, da
FGV, concorda que a classe média é quem vai mais sofrer, ainda que as alíquotas
do IR abaixem. Segundo ele, hoje já comprimida, ela vai ter uma limitação ainda
maior. “O teto para educação hoje em dia é de cerca de R$ 3,5 mil, mas os pais
pagam muito mais em escolas. Se for estabelecido um limite reduzido, o impacto
vai ser negativo. ”
Uma
maneira de compensar seria isentar de IR quem ganha até R$ 5 mil, mas a
proposta, uma promessa de campanha de Jair Bolsonaro, não deve encontrar
terreno fértil para prosperar. As contas não fecham, segundo a equipe
econômica. Já as empresas, em tese as mais beneficiadas com a medida, podem até
ter um alívio com a desoneração da folha. Ocorre que estudos indicam que essa
redução é diluída com o tempo. “É uma enganação também para o empresário”,
sentencia Fleury.
O
projeto que mais se alinha às boas práticas do mundo está em tramitação na
Câmara, e inclui impostos estaduais e municipais
Outro
flanco aberto pela proposta é que, embora a unificação de tributos esteja na
ordem do dia, o governo não emite qualquer sinal de que pretende alterar os
impostos estaduais e federais. Esse é um item fundamental, já que a profusão de
impostos em todas as regiões e diferentes esferas administrativas dificulta a
vida dos empresários – que têm um gasto administrativo enorme para se adequar à
barafunda tributária – e estimula a guerra fiscal, o que acaba diminuindo a
arrecadação global.
OS
PROBLEMAS DA CPMF
Os
efeitos colaterais negativos do tributo sobre movimentação financeira
>
É cumulativo, cobrado em cascata
>
Produtos industriais de maior valor agregado ficam mais caros
>
Perde efeito com o tempo
>
Reduz o crescimento econômico
>
Estimula a informalidade
>
Estimula a abertura de contas em outros países, o uso de dinheiro em espécie e
de criptomoedas
>
Encarece o crédito
(Com
IstoÉ)
Sábado,
17 de agosto ás 09:30